sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Teses quineanas

Visa passar pelas principais teses de Quine contra o modelo canônico[i]

O modelo padrão estabelecido é conhecido por tratar o conhecimento como crença verdadeira justificada. Quine o critica porque há dificuldade na justificação racional de crenças, o conceito de verdade é um problema e por suas posições fundacionalistas e normativistas. Como alternativa surge a proposta de uma epistemologia naturalizada[ii] que vê a ciência como um tipo de conhecimento que pode ser descrito em seu processo de constituição, que afasta a necessidade de ser justificada para ter “status” de conhecimento, por ser uma epistemologia que é vista como um capítulo das ciências naturais e, por isso, não normativa e, por fim, por se ater a uma explicação holística do conhecimento.

De acordo com Conserva e a literatura, o modelo padrão remonta a Platão (diálogos Mênon e Teeteto) através de teses como conhecimento proposicional e universalidade. Porém não obstante seu predomínio, o modelo padrão de conhecimento é motivo de muitas interpretações, embora haja a seguinte teoria firmada:

a)     Conhecimento é X.

b)    X deve ser algo informativo.

c)     As nossas intuições (crenças) são tomadas como ponto de partida: pensamos que uma crença X é um caso de conhecimento, que uma crença Y não é o caso de conhecimento.

d)    Desenvolvemos os esforços para justificar os casos de X como conhecimento e os casos de não X como não conhecimento.

Portanto, o que queremos dizer com conhecimento? Bem, o conhecimento se dá pela noção de significado, então procuramos estabelecer o significado dos conceitos como crença, verdade e justificação e saber como aplicá-los por meio de uma definição operativa que permite decidir sobre os casos. E isso é um critério normativo.

A reação quineana ao modelo padrão. Quine não se detém à análise do significado dos conceitos do modelo padrão, porém busca descrever como os indivíduos adquirem determinadas crenças principalmente as que falam sobre estados de coisas do mundo. Ao invés do conceito foca-se no fenômeno natural. Analisa-se o processo de constituição de crenças racionais e por qual razão é a Ciência o caminho mais confiável em uma crítica ao modelo padrão mais sólida que a de Gettier.

O problema relacionado com a justificação de crenças. Gettier já alertava que mesmo uma crença bem justificada pode não ser verdadeira. Isso porque se exemplifica conhecimento por sentenças declarativas representadas pela fórmula: P sabe que S. Porém, “sabe” depende das noções de crença e justificação tornando o argumento circular. O ponto de Gettier é a justificação e Quine concorda com ele porque uma crença verdadeira pode estar assentada em conjecturas e aí não seria conhecimento. Justificação e verdade se distinguem: pode haver crença verdadeira sem ser justificada ou crença justificada que não seja verdadeira.

Conserva ressalta que a crença pode decorrer mais de uma empatia, ligada a uma disposição psicológica, do que de justificação, de um assentimento intelectual que poderia alçar determinada realidade a um status do conhecimento. Gettier bem demonstrou que um indivíduo pode ter uma crença P falsa que foi bem justificada e o ludibriou, dado o caráter de disposição psicológica de tendencia a concordar com ela, não obstante esteja racionalmente fundamentada.

Mas Quine, que refuta o normativismo, não pretende analisar critérios de justificação. Sua epistemologia pretende descrever o processo de aquisição das crenças por meio de uma psicologia empírica baseada no behaviorismo. Para Quine, nossas intuições dependem de esquemas linguísticos que podem ser verificados por meio de uma teoria do aprendizado linguístico e da naturalização da epistemologia. A formação de crenças vai depender de um sistema linguístico e de evidências empíricas que, juntos, formarão uma rede dentro da qual sentenças podem ser consideradas verdadeiras ou falsas. Devemos levar em conta também a realidade em relação ao conhecimento geral e ao científico em particular, associado a uma referência e ontologia.

É através desses pressupostos que se pode criar uma representação racional da realidade tomando como exemplo as Ciências empíricas e o conjunto de crenças a ela associada. Essas crenças constituem uma teia com algumas mais resistentes e outras podendo ser rejeitadas e a rede se reajusta, por meio de uma teoria holística. Mas as alterações devem ser feitas com simplicidade e sem que a teia seja mutilada.

Cabe ao epistemólogo escolher um esquema conveniente superando até uma possível correspondência aos fatos. É por meio do pragmatismo que o fundacionalismo e o normativismo podem ser contornados. E a crítica de Quine vai abranger a Epistemologia, tido como Filosofia primeira e a Teoria do conhecimento que se pretende normativa. Evitando a necessidade de justificação recusa-se uma hierarquia epistemológica abrindo espaço para outro recorte teórico.

A consequência fundacionalistas na tradição filosófica e no empirismo lógico. De acordo com Conserva, o fundacionalismo epistemológico se inicia com Descartes, pois funda no sujeito o ponto indubitável de conhecimento, anterior ao empírico. Nessa visão, há uma hierarquia que se funda na Epistemologia que precede a Ciência e por ela formamos crenças racionalmente. Inclusive Rorty afirma que a filosofia analítica é oriunda desse projeto buscando terreno firme na análise linguística por meio de uma linguagem universal que permitisse explicitar toda a significação e ali fincando toda a teoria do conhecimento. Ocorre que Quine irá se opor ao empirismo lógico que resguarda as verdades analíticas e contestará a dualidade analítico-sintética chegando a analisar a epistemologia empiricamente.

A opção por descrever processos de conhecimento: saber como e saber que. Quine contesta termos como certeza e conhecimento como sendo vagos no campo científico e, por isso, não se utilizará de conceitos e definições, mas das noções pragmáticas “saber que” e “saber como”. Conceitos pertencem à esfera da semântica internalista e não permitem uma descrição comportamental – observacional e científica. Já a semântica extensionalista se afastará do vínculo entre conhecimento e entidades ou proposições. Quine se fiará na descrição empírica das crenças e, se afastando da linguagem pura pretendida pelo empirismo lógico, se voltará para a linguagem ordinária.

Ora, há um saber (o científico) e a Filosofia busca descobrir como a Ciência se desenvolve e é apreendida, mesmo que ainda suscetível a constante aperfeiçoamento. Já que o modelo fundacionalista cartesiano não deu conta de justificar logicamente a Ciência, Quine procurará descrever como ela é possível sendo instrumento de análise e objeto a ser analisado. Portanto, se filosofa pelo próprio método científico, que é o esquema conceitual vigente.

A recepção da condição de verdade no pensamento quineano. Conserva mostra que o modelo canônico tem por fim a obtenção da verdade por meio da justificação epistêmica. A verdade é obtida através de representação, dentro de uma perspectiva realista, mas sabemos que nossa representação é parcial e sempre superada por novos instrumentos. Porém, o modelo quineano não toma um mundo a ser conhecido, ao contrário, mundo, referência e ontologia são partes acessadas por nós por uma estrutura lógica e linguística. Compreensão de mundo e aprendizado da linguagem são dois lados da mesma moeda[iii].

Além do mais, o modelo padrão utiliza uma justificação apriorística, herança da epistemologia platônico-aristotélica fundada no discurso predicativo e proposicional, base da verdade. Para Quine, a construção do conhecimento vem do uso social da linguagem e não de uma relação representativa palavra-objeto. O conhecimento se constrói eventualmente revisando sentenças antes verdadeiras e como estamos cindidos da referência, a representação é colocada em xeque.

A relação entre sujeito e mundo (representação?) se dá pelo aprendizado da linguagem; cada linguagem tem a sua ontologia, sua teoria de mundo empírica que se afasta do modelo padrão de crença verdadeira justificada.



[i] Fichamento do primeiro capítulo do livro Quine: Linguagem e Epistemologia naturalizada, de José Nilton Conserva. Curitiba, Appris, 2019. Primeira Parte: conhecimento para além do modelo padrão: esboço das teses quineanas. As referências ao longo do fichamento não são citadas e devem ser procuradas no texto original.

[ii] Naturalizada porque se debruça sobre nosso processo natural de aprendizado.

[iii] Representação: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2023/07/representacao-e-correspondencia.html

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