Visa passar pelas principais teses de
Quine contra o modelo canônico[i]
O modelo padrão estabelecido é
conhecido por tratar o conhecimento como crença verdadeira justificada. Quine o
critica porque há dificuldade na justificação racional de crenças, o conceito
de verdade é um problema e por suas posições fundacionalistas e normativistas. Como
alternativa surge a proposta de uma epistemologia naturalizada[ii]
que vê a ciência como um tipo de conhecimento que pode ser descrito em seu
processo de constituição, que afasta a necessidade de ser justificada para ter
“status” de conhecimento, por ser uma epistemologia que é vista como um
capítulo das ciências naturais e, por isso, não normativa e, por fim, por se
ater a uma explicação holística do conhecimento.
De acordo com Conserva e a
literatura, o modelo padrão remonta a Platão (diálogos Mênon e Teeteto) através
de teses como conhecimento proposicional e universalidade. Porém não obstante
seu predomínio, o modelo padrão de conhecimento é motivo de muitas
interpretações, embora haja a seguinte teoria firmada:
a) Conhecimento
é X.
b) X
deve ser algo informativo.
c) As
nossas intuições (crenças) são tomadas como ponto de partida: pensamos que uma
crença X é um caso de conhecimento, que uma crença Y não é o caso de
conhecimento.
d) Desenvolvemos
os esforços para justificar os casos de X como conhecimento e os casos de não X
como não conhecimento.
Portanto, o que queremos dizer
com conhecimento? Bem, o conhecimento se dá pela noção de significado, então
procuramos estabelecer o significado dos conceitos como crença, verdade e
justificação e saber como aplicá-los por meio de uma definição operativa que
permite decidir sobre os casos. E isso é um critério normativo.
A reação quineana ao
modelo padrão. Quine não se detém à análise do
significado dos conceitos do modelo padrão, porém busca descrever como os
indivíduos adquirem determinadas crenças principalmente as que falam sobre
estados de coisas do mundo. Ao invés do conceito foca-se no fenômeno natural. Analisa-se
o processo de constituição de crenças racionais e por qual razão é a Ciência o
caminho mais confiável em uma crítica ao modelo padrão mais sólida que a de
Gettier.
O problema relacionado
com a justificação de crenças. Gettier já alertava que
mesmo uma crença bem justificada pode não ser verdadeira. Isso porque se
exemplifica conhecimento por sentenças declarativas representadas pela fórmula:
P sabe que S. Porém, “sabe” depende das noções de crença e justificação
tornando o argumento circular. O ponto de Gettier é a justificação e Quine
concorda com ele porque uma crença verdadeira pode estar assentada em
conjecturas e aí não seria conhecimento. Justificação e verdade se distinguem:
pode haver crença verdadeira sem ser justificada ou crença justificada que não
seja verdadeira.
Conserva ressalta que a crença pode
decorrer mais de uma empatia, ligada a uma disposição psicológica, do que de
justificação, de um assentimento intelectual que poderia alçar determinada
realidade a um status do conhecimento. Gettier bem demonstrou que um indivíduo
pode ter uma crença P falsa que foi bem justificada e o ludibriou, dado o
caráter de disposição psicológica de tendencia a concordar com ela, não
obstante esteja racionalmente fundamentada.
Mas Quine, que refuta o normativismo,
não pretende analisar critérios de justificação. Sua epistemologia pretende
descrever o processo de aquisição das crenças por meio de uma psicologia empírica
baseada no behaviorismo. Para Quine, nossas intuições dependem de esquemas linguísticos
que podem ser verificados por meio de uma teoria do aprendizado linguístico e
da naturalização da epistemologia. A formação de crenças vai depender de um
sistema linguístico e de evidências empíricas que, juntos, formarão uma rede
dentro da qual sentenças podem ser consideradas verdadeiras ou falsas. Devemos
levar em conta também a realidade em relação ao conhecimento geral e ao
científico em particular, associado a uma referência e ontologia.
É através desses pressupostos que se
pode criar uma representação racional da realidade tomando como exemplo as
Ciências empíricas e o conjunto de crenças a ela associada. Essas crenças
constituem uma teia com algumas mais resistentes e outras podendo ser rejeitadas
e a rede se reajusta, por meio de uma teoria holística. Mas as alterações devem
ser feitas com simplicidade e sem que a teia seja mutilada.
Cabe ao epistemólogo escolher um
esquema conveniente superando até uma possível correspondência aos fatos. É por
meio do pragmatismo que o fundacionalismo e o normativismo podem ser
contornados. E a crítica de Quine vai abranger a Epistemologia, tido como
Filosofia primeira e a Teoria do conhecimento que se pretende normativa.
Evitando a necessidade de justificação recusa-se uma hierarquia epistemológica
abrindo espaço para outro recorte teórico.
A consequência
fundacionalistas na tradição filosófica e no empirismo lógico.
De acordo com Conserva, o fundacionalismo epistemológico se inicia com
Descartes, pois funda no sujeito o ponto indubitável de conhecimento, anterior
ao empírico. Nessa visão, há uma hierarquia que se funda na Epistemologia que
precede a Ciência e por ela formamos crenças racionalmente. Inclusive Rorty
afirma que a filosofia analítica é oriunda desse projeto buscando terreno firme
na análise linguística por meio de uma linguagem universal que permitisse
explicitar toda a significação e ali fincando toda a teoria do conhecimento.
Ocorre que Quine irá se opor ao empirismo lógico que resguarda as verdades
analíticas e contestará a dualidade analítico-sintética chegando a analisar a
epistemologia empiricamente.
A opção por descrever
processos de conhecimento: saber como e saber que.
Quine contesta termos como certeza e conhecimento como sendo vagos no campo
científico e, por isso, não se utilizará de conceitos e definições, mas das
noções pragmáticas “saber que” e “saber como”. Conceitos pertencem à esfera da
semântica internalista e não permitem uma descrição comportamental –
observacional e científica. Já a semântica extensionalista se afastará do
vínculo entre conhecimento e entidades ou proposições. Quine se fiará na
descrição empírica das crenças e, se afastando da linguagem pura pretendida
pelo empirismo lógico, se voltará para a linguagem ordinária.
Ora, há um saber (o científico) e a
Filosofia busca descobrir como a Ciência se desenvolve e é apreendida, mesmo
que ainda suscetível a constante aperfeiçoamento. Já que o modelo
fundacionalista cartesiano não deu conta de justificar logicamente a Ciência,
Quine procurará descrever como ela é possível sendo instrumento de análise e
objeto a ser analisado. Portanto, se filosofa pelo próprio método científico,
que é o esquema conceitual vigente.
A recepção da condição de verdade no pensamento quineano. Conserva mostra que o modelo canônico tem por fim a obtenção da verdade por meio da justificação epistêmica. A verdade é obtida através de representação, dentro de uma perspectiva realista, mas sabemos que nossa representação é parcial e sempre superada por novos instrumentos. Porém, o modelo quineano não toma um mundo a ser conhecido, ao contrário, mundo, referência e ontologia são partes acessadas por nós por uma estrutura lógica e linguística. Compreensão de mundo e aprendizado da linguagem são dois lados da mesma moeda[iii].
Além do mais, o modelo padrão utiliza
uma justificação apriorística, herança da epistemologia platônico-aristotélica fundada
no discurso predicativo e proposicional, base da verdade. Para Quine, a
construção do conhecimento vem do uso social da linguagem e não de uma relação
representativa palavra-objeto. O conhecimento se constrói eventualmente
revisando sentenças antes verdadeiras e como estamos cindidos da referência, a
representação é colocada em xeque.
A relação entre sujeito e mundo
(representação?) se dá pelo aprendizado da linguagem; cada linguagem tem a sua
ontologia, sua teoria de mundo empírica que se afasta do modelo padrão de crença
verdadeira justificada.
[i] Fichamento do primeiro
capítulo do livro Quine: Linguagem e Epistemologia naturalizada, de José
Nilton Conserva. Curitiba, Appris, 2019. Primeira
Parte: conhecimento para além do modelo padrão: esboço das teses quineanas.
As referências ao longo do fichamento não são citadas e devem ser procuradas no
texto original.
[ii] Naturalizada porque se debruça
sobre nosso processo natural de aprendizado.
[iii] Representação: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2023/07/representacao-e-correspondencia.html
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