sábado, 5 de agosto de 2023

Teorias semânticas do uso

Uma introdução ao significado como uso da linguagem mediante regras ou relações de inferência [i]

Dado que numa teoria proposicional do significado as frases são entidades abstratas e inertes, surgem teorias do uso do significado e, advogando a esse respeito Wittgenstein (o segundo), que aproximou frases de peças em um jogo e que são usadas em práticas sociais convencionais e regidas por regras. O significado, para uma teoria do uso, é o emprego correto de expressões. Por outro lado, Wilfrid Sellars aproxima o ato de inferir de uma expectativa social, se contrapondo ao fato de exprimir uma proposição. Não obstante, as teorias do uso enfrentam obstáculos, como é o caso de explicar como o uso da linguagem difere do jogo de xadrez, por exemplo, já que esse não gera significado, ou como uma frase significa que tal e tal.

Há conhecida anedota de que Russell examina as frases no quadro de negro como objetos em si, o que foi combatido por Wittgenstein e Austin que viam a linguagem como prática social. Contudo, se as proposições são abstrações do que é dito no mundo real, não se pode negar que há abstrações, por exemplo, quando abstraímos um som sonoro ou a própria gramaticalidade. Ainda haveria a perspectiva de Strawson de que proferir é produzir.

O uso num sentido aproximadamente wittgensteiniano

Do ponto de vista de Wittgenstein, é por algo familiar que entramos no misterioso mundo do significado. A apreensão do significado se dá pelo receptor e a compreensão pelo ensino e aprendizagem da linguagem no comportamento conversacional de fazer jogadas, como quando as crianças aprendem rapidamente o que fazer perante certos ruídos[ii]. Embora ele não negue que haja relações referenciais, para ele a atividade linguística se dá por meio de regras similares as de jogar jogos onde as expressões (olá, obrigado) são como as peças (cavalo, torre). Há diversos jogos de linguagem (encontrar alguém e saudar, linguagem entre marido e mulher ou a aritmética...) nos quais se utilizam dispositivos convencionais e papéis funcionais usados em determinadas ocasiões e contextos.

O jogo de linguagem é ilustrado pela famosa analogia da linguagem primitiva entre servente e pedreiro, onde o que conta é a função (fazer algo) e não a relação de referência. Mas essa ilustração traz a dificuldade com frases longas e complexas que necessitariam de um mecanismo adicional como a verificação, que foi proposta pelos positivistas lógicos. Outro ponto difícil para a abordagem de Wittgenstein é o da consequência lógica, algo que a teoria inferencial do significado de Sellars lidaria ao tomar o ato de inferir como ato social e regras de entrada e saída baseadas na prática social e não em verdades lógicas.

Objeções e algumas respostas

Isso posto, nota-se que, se a teoria do uso evita as principais objeções das teorias já vistas (referencial, ideacional e proposicional), além de ser naturalista por trazer o uso da língua no mundo real, obviamente também enfrenta objeções. Um primeiro ponto é o de explicar a diferença de significado de uma expressão na Terra ou na Terra Gêmea, com a resposta de que se tratam de jogos diferentes já que as regras são em função de coisas. Um segundo ponto é explicar a regra de uso para nomes, o que conduz ao descritivismo. Depois, trata-se de explicar como podemos compreender frases longas em uma primeira vez sem ter havido convenção anterior. E aqui recorre-se ao princípio de Frege de compreender novas frases composicionalmente pela combinação de palavras que vão além da norma.

Seguindo com as objeções, Lycan cita o caso de saber usar a expressão sem a compreender, qual seja, uso perfeito, mas significado nulo. A quinta objeção coloca que as atividades regidas por regras não têm o significado da linguagem, mas o que os distingue? Aqui Lycan faz uma discussão com o pano de fundo de que em um jogo as regras estão circunscritas a ele, mas na linguagem há regras mais “ricas” e que permitem a predicação. Por outro lado, se é demasiadamente desacreditada a regra do jogo (menos rica), seu convencionalismo se torna insuficiente de dar conta da linguagem que trataria de coisas do mundo[iii], o que levaria a abrir uma porta para o referencialismo.

Fechando as objeções, a última observa que jogos, apesar de significativos, não permitem asserções, diferentemente da linguagem, isto é, não se consegue “dizer que P”, os jogadores não dizem ou pedem que algo, coisa essencial da linguagem[iv].

Inferencialismo

Robert Brandom, comentador de Sellars, traz uma concepção de uso normativa que foge de algumas objeções das ideias originais de Wittgenstein e que releva o papel da referência. Para ele, de acordo com Lycan, há um compromisso associado com a elocução pública da frase, feita com base em razões, regras e um histórico dos acontecimentos.

Sobre a distinção entre os jogos e a linguagem, a proposta de Brandom mostra que as jogadas do xadrez, por exemplo, não são inferências, ao passo que as elocuções linguísticas, alicerçadas em uma razão probatória, são inferenciais.  Ele também pode escapar da terceira objeção ao admitir um tipo fraco de composicionalidade ao tratar de frases longas.

Por fim, por ser demais epistemológica ao usar noções como justificação, defesa, etc., tende-se a se aproximar a teoria inferencialista mais do verificacionismo do que de Wittgenstein, mas ainda nos restará analisar a teoria de Austin de ato ilocutório que se baseia na teoria do uso. 



[i] Fichamento de Filosofia da linguagem: uma introdução contemporânea. LYCAN, William. Tradução Desiderio Murcho. Portugal: Edições 70, 2022. Capítulo 6: Teorias do uso.

[ii] Notadamente chorar frente à dor.

[iii] Ou conforme citação a Friedrich Waismann, os genuínos jogos de linguagem estariam integrados na vida.

[iv] Função-que ainda carente de aprofundamento. 

segunda-feira, 24 de julho de 2023

Teorias semânticas da entidade

Mostra as abordagens das teorias tradicionais do significado e de como elas reportam a um "algo"[i]

Partindo-se da premissa de que uma teoria referencial do significado não é satisfatória[ii], Lycan traz pontos que devem ser respondidos por uma teoria do significado, como explicar por que alguns objetos físicos têm significado, por que expressões distintas podem ter o mesmo significado, por que uma única expressão pode ter mais de um significado e o por que significado de uma expressão pode estar contido em outra.

Tende-se, então, a se tratar o significado como coisa individual, seja como ideias particulares em uma mente[iii] ou como proposições. Nesse segundo aspecto, a frase “a neve é branca” significa uqe (ou expressa a proposição de que) a neve é branca. Um sinónimo dela, por exemplo, “la neige est blanche”, também expressa a mesma proposição, mas seria possível explicar o significado como sendo uma proposição?

Bem, uma teoria do significado, que visa esclarecer por que uma sequência de ruídos pode ser considerada uma frase com significado, tem que elucidar os sinônimos, a ambiguidade, um significado contido em outro e a consequência lógica. No rol das teorias tradicionais do significado, Lycan enumera as teorias de entidade que tomam os significados por coisas individuais, entre elas, a que trata significados como entidades mentais, e a que os trata como entidades abstratas, mas não mentais, que seriam as proposições, postuladas por Bertrand Russell.

Teoria ideacional: a mais intuitiva

Remete a John Locke (1690) e define que os significados das expressões linguísticas são ideias na mente. Daí que uma sequência que significa algo exprime semanticamente um estado mental particular que é portador de conteúdo, como podendo ser uma ideia, uma imagem, um pensamento ou uma crença.

Dessa definição pode se objetar que tipo de coisa é essa ideia. Se é uma imagem, há o problema de ela ser mais pormenorizada que o significado, isto é, imagens são muito particulares para serem tomadas como significados de frases, por exemplo. Já se pensarmos em um conceito mental, cairíamos em circularidade pois seria difícil definir um conceito sem referir ao significado. Sendo um pensamento completo, tem-se que nem toda a frase exprime o pensado.

Uma segunda objeção diz que há palavras que não tem imagem, conceito associado (por exemplo, “é”, “de”). Outra objeção enfatiza o caráter do significado de ser público e intersubjetivo, ao passo que imagens, ideias e sentimentos são subjetivos, quer dizer, estão em uma mente e diferem de pessoa para pessoa. Por fim, objeta-se que há frases que terão significado, mas que nunca foram pensadas por alguém, daí que não têm entidade mental.

Teoria proposicional: a principal

Proposições são itens abstratos independentes da linguagem e das pessoas, são gerais e eternas. Elas vêm na esteira das ideias, em outras palavras, se pensarmos em uma ideia não como atual, mas possível, então ela acaba sendo uma proposição... A definição de Russell e Moore, conforme apresentada por Lycan, é mais ou menos assim: seja F uma sequencia de palavras com significado, P uma proposição (um conteúdo abstrato) e g uma sequencia sem significado, F tem relação com P e g não tem relação com P, sendo essa relação uma expressão.

Resumindo, F tem significado em virtude de exprimir a proposição particular P. Essa teoria resolve os fatos do significado, como o sinônimo, quando F1 e F2 exprimem a mesma proposição e a ambiguidade, se F exprime P1 e P2. Caracterizando um pouco mais, as proposições são expressas por frases e identificáveis por meio de uma oração - “que”, uma oração subordinada substantiva objetiva direta. Essa função, que é usada no discurso indireto, liberta a proposição de ser uma expressão particular. E, também, proposições são estados mentais pois podemos pensar que P[iv].

 Lycan ressalta que as proposições podem ser verdadeiras ou falsas, já que o seu valor de verdade muda no tempo ou em determinados contextos, conforme a frase que a expressa seja V ou F. Então, a elocução de uma frase pode expressar um P pode ser V ou F, a depender de quem a diga e quando a diga. Desse tratamento, conclui-se que as frases derivam seus valores de verdade das proposições.

Por fim, as proposições tem uma estrutura interna que é composta por parte conceituais abstratas. Digamos, “neve” tem significado, mas não é uma proposição, somente a frase é. Então “neve” é um constituinte da proposição, um conceito. Mas, outro fato do significado é a questão de como um ser humano compreende uma frase. Para Moore, uma pessoa tem uma relação com P e sabe que F exprime P, sendo que essa relação é a de captar, apreender a proposição.

Objeções

Contudo, se a teoria proposicional se harmoniza com o senso comum, ela também levanta objeções que serão tratadas por Lycan. As proposições são itens abstratos esquisitos que existem apesar dos humanos e com eles se relacionam, mas não estão no espaço-tempo. Aqui podemos lembram de Occam e sua máxima de não postular entidades além da necessidade, portanto, seriam as proposições desnecessárias? Por outro lado, surge a dificuldade de como nos relacionamos com elas, apesar da proposta de Moore de que podemos captá-las, isso porquê parece haver um significado para “além das palavras”, que são as tais proposições e mesmo frases diferentes tem significados diferentes. Além do mais, sabe-se que elas são comuns na ciência e na filosofia, para explicar os fenômenos. Já para Gilbert Harman a teoria proposicional nada explica de fato pois a proposição se confunde com o significado, parecendo a mesma coisa.

Por fim, Lycan evidencia que o significado tem um papel social dinâmico, mas, se é assim, a proposição deveria ter um papel causal na explicação, mas não o tem, o que abre espaço para as teorias dos filósofos da linguagem dos anos 50 que explicam o significado em conexão com o comportamento humano. São as teorias do uso que Lycan (e nós) abordará no próximo capítulo, teorias semânticas do uso que explicam o significado em função do uso na da linguagem. 



[i] Fichamento de Filosofia da linguagem: uma introdução contemporânea. LYCAN, William. Tradução Desiderio Murcho. Portugal: Edições 70, 2022. Capítulo 5: teorias tradicionais do significado.

[iii] Em um sentido mais abstrato, não seria uma ideia individual, mas um tipo de ideia. Por exemplo, ao invés da ideia de um cão específico, seria uma ideia de cão.

[iv] Sobre proposições e a função - que, Ruffino e Costa terão mais a dizer, esperamos que em breve.

terça-feira, 4 de julho de 2023

Significado relativo

Sobre a relatividade do significado nas propostas de Frege e do segundo Wittgenstein*

Nos parece que tanto Frege quanto o segundo Wittgenstein relativizam o significado em suas propostas de filosofia da linguagem. Quando Frege conceitua o significado como sendo o sentido de uma frase, chegando até a cortar o seu vínculo com a referência, ficamos no campo da subjetividade, isto é, o sentido é algo que nós atribuímos a um objeto. Ocorre que diferentes pessoas podem atribuir diferentes sentidos a um objeto e não partilharem esses sentidos de maneira que, na presença do objeto, eles podem não ser identificados daquelas diversas maneiras.

Nesse sentido fregeano, a forma como falamos do objeto é mais importante que o próprio, o sentido que damos é aquele sobre o qual o objeto é apresentado no discurso. A apresentação do objeto está intimamente ligada ao nosso processo cognitivo, pois quando um objeto tem um modo de apresentação diferente daquele que conhecíamos, tem-se um novo valor cognitivo. Assim, muitas formas de apresentação podem ser feitas a respeito de um mesmo objeto e esses são muitos sentidos e trazem diferentes significados que se tornam relativos, por mais que eles devam buscar a referência.

Já para o segundo Wittgenstein, o significado de uma frase é dado pelo seu uso em um contexto e uma mesma palavra ou frase pode ter um uso diferente em determinados contextos ou por grupos de pessoas diferentes, o que também acarreta diferentes significados. A proposta de Wittgenstein parece ser mais intersubjetiva, pois parece implicar um acordo entre os grupos de falantes sobre os significados que eles darão para as frases em seus usos, gestos, tons de voz. A linguagem passa a ser mais um meio, um aparato para a comunicação que precisa ser eficiente para se alcançar um fim.

Mas essa caracterização pode ser ineficiente para um terceiro que desconhece as regras que foram se impondo para que aquele modelo de comunicação fosse criado e se efetivasse. O terceiro pouco entenderia do que ocorre em contextos particulares, de domínios específicos e com regras frouxas. Assim, muitos jogos de linguagem poderiam eventualmente utilizar as mesmas palavras ou frases, mas em usos distintos e trazendo significados diferentes, que também se relativizariam.

Se estamos certos no que foi dito até agora, ficamos a mercê da relatividade do significado. Mas, isso é um problema? Pode não ser em muitos casos e até, nesses casos, trazerem vantagens competitivas e de adaptação, mas de Frege** se poderia ter como consequência que dois interlocutores concordam sobre o sentido de determinada expressão ou objeto que não é um sentido convencional e que pode deturpar o seu significado, podendo levar ao terraplanismo. A respeito de Wittgenstein, certas expressões tiradas de seu contexto poderiam ser catastróficas.

De todo modo, ambas as teorias podem ser aceitas se devidamente introduzidas e respeitadas dentro de suas próprias condições, mas elas não garantem que a linguagem pode ser utilizada de maneira objetiva e universal. Essa maleabilidade da linguagem aporta um dinamismo que é perspícuo, mas que gera dificuldades em domínios como o científico, medicinal ou jurídico. Sempre pode e deve haver um espaço de manobra, mas a busca de um significado mais rigoroso pode se fazer necessário quando até as máquinas já começam a difundi-lo.

_____________

* Filosofias referencialistas e / ou externalistas como as de Kripke, Putnam, etc. abordam o significado de maneira diversa, mas nem por isso podemos dizer que não sejam relativistas.

** Não nos esquecemos que o valor de verdade, para Frege, depende da referência.

segunda-feira, 3 de julho de 2023

Representação e Correspondência

Aborda a superfície de dois temas controversos: a representação mental da realidade e a sua correspondência com o mundo[i]

O primeiro ponto que gostaríamos de tocar é o da representação, quando tida como esboço mental da realidade. É mais ou menos como se fosse uma mente vazia que aponta para fora (Sartre) ou uma mente que espelha o mundo (Descartes, Kant), com os segundos valorizando uma concepção egóica. Ao tratar do conteúdo semântico das proposições, Costa defende o espelhamento dos dados do mundo com a consciência pensando, por meio dos dados-dos-sentidos.[ii] O mais interessante é que ele o faz trazendo evidências científicas de exames de imagem do cérebro (BOLD fMRI)[iii]. Ora, seria possível mapear os “sense-data” em nosso cérebro e são os seus conteúdos semânticos que são por nós partilhados com os demais por analogia, evitando-se também, assim, o solipsismo.

A correspondência, algo também deveras controverso, marca muito essa relação linguagem-mundo, mente-linguagem-mundo e, nesse contexto, Costa defende os fatos como “os fazedores-de-verdade universais”. Em linha com Frege-Strawson e em oposição a Austin, Costa concorda com a correlação entre um pensamento e um fato e, nesse sentido, enfatiza o status ontológico do fato, pois é ele que é a referência do conteúdo empírico. Aqui dizemos: por mais que haja um sentido que é comunicado e entendido na teoria de Frege, o seu conteúdo só tem valor de verdade se corresponde a algo no mundo.

É a alusão que Costa faz a uma teoria correspondencial da verdade, ou seja, um conteúdo cognitivo, um pensamento verdadeiro se ancora em um fato empírico, que é uma situação ou estado de coisa cuja descrição começa com uma cláusula-que, conforme definição de Strawson. Por exemplo, o fato de que “o seu estado de saúde é bom” é algo que não muda enquanto dura e pode fazer o papel de fazedor-de-verdade do conteúdo cognitivo do enunciado.



[i] São temas que Costa trata lateralmente nos trechos que até então tivermos oportunidade de ler em sua obra Cognitivismo Semântico, mas que servem para deixarmos esses assuntos em pauta.

[ii] Lembremos que Costa é um neo-cognitivista.

sexta-feira, 30 de junho de 2023

Quem é o homem no canto da sala bebendo martini?

Trata da distinção de Donnellan e porque Kripke não a considera[i]

Tentemos ser breves sobre esse ponto: dois homens estão em uma festa e falam de um terceiro que, no canto da sala, bebe algo. Os dois, quando falam dele, dizem: “o homem no canto da sala bebendo martini, etc...”, e, assim, a ele se referem. Entretanto, o homem não bebe, de fato, martini, ele bebe soda e, mais do que isso, ninguém na sala bebe martini pois não há martini na festa.

Ora, do ponto de vista de Donnellan, esse é um tipo de uso descritivo referencial, isto é, uma expressão que permite referir um objeto, mesmo que a expressão esteja errada do ponto de vista atributivo, já que se atribuiu ao homem que ele bebia martini o que, mesmo possibilitando a sua identificação, não era de fato o que ocorria. Mas é o uso descritivo atributivo que também permite identificar, aí sim, de forma correta, quer dizer, univocamente.

É o que ocorre quando, em uma investigação criminal, se busca o assassino e, ao encontrar uma pegada na lama, o policial diz: “o homem com essa pegada número 43...” e, desse modo, atribui a pegada ao assassino, embora ele não esteja presente e não tenho sido descoberto ainda, impossibilitando a referência.

*  *  *  *  *

Na teoria das descrições definidas[ii], Russell enfatiza o contributo semântico que elas carregam já que, para ele, teriam significado para lá de seus referentes, não obstante os quatro quebra cabeças que ele expõe sirvam para mostrar que as descrições definidas não se conectam ao mundo por nomeação direta. Mas, Strawson entende que frases são usadas em situações conversacionais concretas em objeção à abordagem russelliana de tomar frases em abstrato, como objetos em si.

Para Strawson, as frases são usadas pelas pessoas para se referirem e em determinados contextos – só as expressões não referem. Nesse viés, ele não toma as frases como proposições que possuiriam uma forma lógica e um valor de verdade. Porém, por mais que não sejam as expressões, mas as pessoas que refiram, há um sentido secundário em que expressões referem: quando há um objeto que as satisfazem univocamente: o referente semântico da descrição. Pois bem, se Russell quer insistir que as descrições não são expressões referenciais, há esse sentido secundário no qual uma descrição pode ter um referente. E é disso que trata a distinção de Donnellan.

Donnellan pegará nesse ponto que a análise de Russell não capta: o uso de descrições definidas como nomes, para se referir. Então, se para Russell, um uso referencial como <<O Sacro Império Romano>>, com as iniciais maiúsculas, não passa de um título e não de uma descrição, Donnellan mostra que há casos de descrições usadas para darem atenção a um indivíduo particular.

Tomemos a expressão “O homicida do Ferreira é louco”. Podemos notar que se trata de um uso atributivo, já que pretende dizer que quem cometeu o terrível crime de matar o Ferreira é louco (atribui o predicado louco ao homicida). Mas, alguém (o Pedro) poderia estar a ver o julgamento, sem conhecer nada do réu, e fazer a afirmação: “O homicida do Ferreira é louco”, pois ele vê que os olhos do homem estão revirando e, dessa forma, Pedro se refere ao réu independentemente dos atributos (ele poderia estar apontando para o assassino). Conforme Lycan, o que Pedro afirma é verdadeiro se e somente se o réu for louco, independentemente de ter ou não cometido o homicídio. A isso Donnellan chama uso referencial.

Se Russell escreve como se todas as descrições fossem usadas atributivamente, Strawson relegou o uso atributivo ao enfocar o contexto de referência. Esse duplo aspecto leva à conclusão de que há ambiguidade quanto às descrições definidas. No uso referencial, o público escolhe do que se está a falar e esse uso não ocorre essencialmente, mas para chamar a atenção acerca daquela pessoa. Então, <<O F é g>>, para Donnellan, se nada é F, de nada se disse que é g (uso atributivo, isso não se aplica para o uso referencial, já que não se referencia nada).

Por outro lado, na festa há uma mulher com um acompanhante sobre o qual se diz “O marido dela lhe dá muita atenção”[iii]. Ocorre que o acompanhante é referido mesmo a mulher não sendo casada e esse é o conceito de referente semântico: aquele que satisfaz a descrição (portanto nenhum, já que ela não é casada) e que diverge do referente real[iv]. Conclui-se que, para Donnellan, não importa se não houver homicida do Ferreira, o que se disse é verdadeiro se e somente se Joaquim é louco.

*  *  *  *  *

A respeito de Kripke, Ruffino mostra que ele[v] não considera descrições definidas na análise dos nomes próprios, mas apenas seu nome ordinário[vi]. Ruffino reforça que duas condições para que uma descrição definida funcione bem são a existência e a unicidade, o que foi questionado por Donnellan, para quem isso nem sempre ocorre, embora Kripke não tenho levado isso a sério. Em seu ensaio (1966), Donnellan diz que, às vezes, fazemos referência a um objeto embora a condição de existência não seja satisfeita (aqui ele cita o exemplo do título desse texto).

Ruffino enfatiza que o falante refere, o locutor entende e a conversa continua. É possível ser bem-sucedido em se referir e se comunicar mesmo usando uma descrição errada[vii]. Tudo funciona bem na comunicação mesmo com a descrição defectiva. Esse é o uso referencial de uma descrição definida quando, pelo exemplo de Ruffino, você está em um saguão esperando uma palestra começar e passa um rapaz de terno e gravata, do que você diz: “O palestrante chegou” e seu colega entende que a pessoa chegou, mas você estava errado, ele não é o palestrante.

Nesse caso mencionado, o conteúdo da descrição ou falha ou é irrelevante. Já no uso atributivo da descrição definida o conteúdo descritivo é essencial. Se ora funciona um uso e ora outro, é o caso de que a teoria de Frege-Russell falha, mas Kripke não considera esses casos e explica que esse ponto é uma questão de pragmática, pois é uma questão prática, já a semântica é uma questão mais restrita, que requer características precisas. Essa circunscrição da semântica com relação à pragmática ainda será nosso tema.



[i] Enalta-se o didatismo de Ruffino a respeito do argumento mas, ainda assim, nosso texto só toca a superfície do problema. Conforme https://www.youtube.com/embed/wRhexp8nqR4, acesso em 25/06/2023.

[ii] Aqui argumenta-se conforme nosso entendimento de Lycan, embora muita coisa fique de fora. Filosofia da linguagem: uma introdução contemporânea. LYCAN, William. Tradução Desiderio Murcho. Portugal: Edições 70, 2022.

[iii] Conforme Lycan, esse exemplo é de Leonard Linsky.

[iv] Seria uma referência fraca ou pseudo referência?

[v] Em Name and Necessity.

[vi] Considera como nome "Emmanuel Macron", mas não considera da mesma forma “O atual presidente da França”, como em O F é g. Ora, como Ruffino também mostrará, para Frege-Russell é a descrição que liga o nome ao objeto

[vii] Isso enseja a ideia de que pessoas conversam e se entendem independentemente de estarem usando descrições corretas. Seria terraplanismo?

segunda-feira, 19 de junho de 2023

O esse do concreto ao universal

Entre o objeto, a ostensão, o Sinn e o uso

É interessante notar a proximidade do indexical com o mundo. Sua primazia pode ser ressaltada com o demonstrativo “esse” que, acompanhado do gesto de ostensão, toca a realidade. Quando dizemos “essa pessoa” apontando para ela, não resta dúvidas: ela está lá. E isso comunica muito mais do que dizer “a pessoa que está lá” ou a pessoa X (descrição definida e nome próprio, respectivamente)[i].

Contudo, essa pretensão de certeza trava a linguagem porque fixa o sentido. Por um lado, “essa pessoa” é “essa pessoa”, pessoa concreta, embora essa coisa “essa pessoa” possa trazer significados diversos. Por outro lado, “essa pessoa” é uma formulação universal porque eu só poderia falar daquela pessoa usando o “essa” (demonstrativo) “pessoa” (objeto). Quando a linguagem toca a realidade ela vira uma passagem, não deixa “pegar um sentido”. Só que há vários, várias sintaxes.

* * * * *

Eu concluí um fluxo similar ao seguinte, das primeiras palavras de CC no Cognitivismo[ii]: “objeto” [uma pessoa] <= “indexical” [essa pessoa] (está pertinho) <= “descrição definida” [a moradora do apto 23] (comunica algo) <= “nome próprio” [Maria] (indistinto).

Já Wittgenstein, sobre demonstrativos: “O demonstrativo “este” nunca pode ficar sem portador. Poderíamos dizer: “Enquanto houver um este, a palavra ‘este’ tem significado, seja este simples ou composto”. – Isso, contudo, claramente não faz dessa palavra um nome. Ao contrário; pois um nome não é utilizado com um gesto ostensivo, mas apenas explicado por ele.”[iii]

E sobre nomes e descrições: “Nomear e descrever não estão, de fato, em um mesmo plano: O nomear é uma preparação para a descrição. O nomear ainda não é, de modo algum, um lance no jogo da linguagem, - assim como colocar uma peça de xadrez sobre o tabuleiro ainda não é um lance no xadrez. Pode-se dizer: Com a nomeação de uma coisa ainda não foi feito nada. Aliás, ela não tem um nome, a não ser no jogo. Eis também o que Frege queria dizer ao afirmar que uma palavra tem significado apenas no contexto da frase”[iv]

O mais interessante é que, pelas Investigações, minha pergunta de praxe: “Eu falo e você me escuta, mas entende?” teria uma resposta em aberto, variando entre sim e não, a depender do contexto e demais envoltórios.



[i] Se existir algo lá.

[ii] COSTA, C. Cognitivismo Semântico: Filosofia Da Linguagem Sob Nova Chave. Curitiba: Editora Appris, 2022.

[iii] Investigações Filosóficas. Ludwig Wittgenstein. São Paulo: Fósforo, 2022. Sessão 45, p. 54.

[iv] Idem. Sessão 49, p. 58. 

domingo, 11 de junho de 2023

Autoimagem compartilhada

Mostra um caminho que possibilita achar uma imagem de “eu” que pode ser compartilhada[i]

Em sua análise dos indexicais, Costa nos apresenta o conceito de pessoa como o conteúdo do eu. Os indexicais, como ele define, são termos singulares que servem para identificar particulares, como por exemplo, os demonstrativos “este” e “aquele”, os advérbios “aqui” e “agora” ou o pronome pessoal “eu”, o qual focaremos nesse texto.

Para Costa, é por meio dos indexicais que a linguagem toca a realidade, o que fica bem evidente quando dizemos “Dai-me esta caneta”. O “esta” indica o objeto próximo ao falante e, quando acompanhado pelo gesto de ostensão, aquele que aponta para a caneta, deixa mais evidente o contato com a realidade, mediante a linguagem.

Contudo, termos ou sentenças indexicais têm a características de variarem o sentido conforme o contexto: “Hoje é sexta-feira” é verdade em uma sexta-feira, mas não é verdade em um sábado. Costa define duas espécies de significado para os indexicais: a função lexical, que é o significado linguístico e o conteúdo semântico que é o sentido[ii].

Ora, a função lexical é o sentido literal do termo, invariante: no caso do “eu” é o falante. Essa é a regra, “eu” sempre se refere à pessoa que o profere no momento que profere. Porém, a função lexical é insuficiente quando há significação, pois ele é diferente quando dito por pessoas diversas. É aí que aparece a segunda espécie de significado do indexical: o conteúdo semântico que varia com o contexto de proferimento, levando em conta a situação real de fala[iii].

Esse segundo significado traz a referência do “eu” e que pode dizer tanto quanto o nome próprio diz. Como está associado à pessoa que diz, seu conteúdo semântico é o objeto, o ser humano[iv]. É aí que Costa reflete que, para entender pronomes pessoais, precisamos primeiro entender o que é uma pessoa qualquer e depois situá-la em um contexto, adicionar um sexo ou gênero, idade e etc. Resume-se em um “eu” + regra de identificação e aplicá-los em um contexto espaciotemporal, que é aquele compartilhado por todos nós.

Para Costa, é uma certa pessoa, conceito como postulado por Strawson, que é o objeto real de referência do pronome pessoal eu. Essa pessoa é empírica, espaciotemporal e psicológica, composta por uma mente humana e um corpo físico biológico. O eu, nessa definição, é um “eu” “palpável”, isto é, um eu que pode ser compartilhado e que supera o eu fugidio de Hume ou o eu intangível de Kant.

A fortaleza do conceito de Pessoa de Strawson, reside no fato de que ele é um conceito primitivo (possui primitividade lógica), quer dizer, ele vem antes de uma propriedade mental ou física, esses sim, dele dependentes. Conforme ele: “O que temos de reconhecer, ..., é a primitividade do conceito de pessoa.” (p. 144)[v] É a um indivíduo que são aplicados predicados atribuidores tanto de estados de consciência quanto de características físicas.

É por tal conceito que Costa supera (e mesmo Strawson) o “eu” humiano, aquele fluxo de sensações que pode ser constituído a partir de uma autoimagem que de nós fazemos, pelo acúmulo de nossas ideias, memorias e convicções, de maneira indireta a partir do fluxo[vi]. Segundo Costa, há uma constituição egóica psicológica que, se no todo é considerada transcendental por Kant, pode ser conhecida “por partes”. Essa constituição não é a totalidade porque o “eu” não pode, ao mesmo tempo, ser observado e observador, e sim o oposto, forma uma ideia de si no tempo. Citemos Costa:

“Quando penso em meu próprio eu, porém, é naquilo que sou, é no que poderíamos chamar uma constituição egóica subjetiva pertencendo à minha pessoa e que sou capaz de experienciar diretamente como um todo, mas da qual formo uma ideia com base em estados mentais que se reiteram, que são mais ou menos interrelacionados, que por vezes me vêm à mente e aos quais posso me referir”. (p. 32)

Essa constituição subjetiva faz parte da trinca que será conceituada por Costa em sua teoria: ela se refere ao léxico e será instanciada por um conteúdo semântico que é uma pessoa particular [pensável] e que, no ato da referência, aponta a uma pessoa real correspondente (caso haja). Tudo isso mostra como a linguagem toca à realidade e como a Filosofia da Linguagem não evita uma ontologia, por mais que tenham sido feitos esforços analíticos[vii].



[i] Toma por base a argumentação presente em COSTA, C. Cognitivismo Semântico: Filosofia Da Linguagem Sob Nova Chave. Curitiba: Editora Appris, 2022.

[ii] Embora pareça que para Kaplan eles sejam um só, o caráter, como será abordado por Costa mais a frente, mas não nessa comunicação.

[iii] Um exemplo que Costa usa é bem figurativo. É uma situação em que o doente recebe uma visita que diz: “Eu estou aqui”. Esse “eu”, em casos como este, vem carregado de significado, é um “eu” que tem uma história implícita entre falante e ouvinte, visita e doente, e que traz conforto. Há também o contraexemplo do animal que diz “Eu me chamo Loro”, que empobrece o sentido.

[iv] Aqui não entraremos na questão principal de Costa que é a de discutir a teoria da referência direta que ele pretende superar, por meio de um cognitivismo neofregeano. Sobre isso, esperamos falar.

[v] STRAWSON, P. Indivíduos: Um ensaio de metafísica descritiva. São Paulo: Editora UNESP, 2020

[vi] Último parágrafo aponta para esse problema: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2015/08/ceticismo-alegre-e-modesto.html.

[vii] Lembrar que Sagid divide o tema em problemas descritivos e fundacionais, conforme introdução: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2022/10/filosofia-da-linguagem-introducao-e.html.