sexta-feira, 30 de junho de 2023

Quem é o homem no canto da sala bebendo martini?

Trata da distinção de Donnellan e porque Kripke não a considera[i]

Tentemos ser breves sobre esse ponto: dois homens estão em uma festa e falam de um terceiro que, no canto da sala, bebe algo. Os dois, quando falam dele, dizem: “o homem no canto da sala bebendo martini, etc...”, e, assim, a ele se referem. Entretanto, o homem não bebe, de fato, martini, ele bebe soda e, mais do que isso, ninguém na sala bebe martini pois não há martini na festa.

Ora, do ponto de vista de Donnellan, esse é um tipo de uso descritivo referencial, isto é, uma expressão que permite referir um objeto, mesmo que a expressão esteja errada do ponto de vista atributivo, já que se atribuiu ao homem que ele bebia martini o que, mesmo possibilitando a sua identificação, não era de fato o que ocorria. Mas é o uso descritivo atributivo que também permite identificar, aí sim, de forma correta, quer dizer, univocamente.

É o que ocorre quando, em uma investigação criminal, se busca o assassino e, ao encontrar uma pegada na lama, o policial diz: “o homem com essa pegada número 43...” e, desse modo, atribui a pegada ao assassino, embora ele não esteja presente e não tenho sido descoberto ainda, impossibilitando a referência.

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Na teoria das descrições definidas[ii], Russell enfatiza o contributo semântico que elas carregam já que, para ele, teriam significado para lá de seus referentes, não obstante os quatro quebra cabeças que ele expõe sirvam para mostrar que as descrições definidas não se conectam ao mundo por nomeação direta. Mas, Strawson entende que frases são usadas em situações conversacionais concretas em objeção à abordagem russelliana de tomar frases em abstrato, como objetos em si.

Para Strawson, as frases são usadas pelas pessoas para se referirem e em determinados contextos – só as expressões não referem. Nesse viés, ele não toma as frases como proposições que possuiriam uma forma lógica e um valor de verdade. Porém, por mais que não sejam as expressões, mas as pessoas que refiram, há um sentido secundário em que expressões referem: quando há um objeto que as satisfazem univocamente: o referente semântico da descrição. Pois bem, se Russell quer insistir que as descrições não são expressões referenciais, há esse sentido secundário no qual uma descrição pode ter um referente. E é disso que trata a distinção de Donnellan.

Donnellan pegará nesse ponto que a análise de Russell não capta: o uso de descrições definidas como nomes, para se referir. Então, se para Russell, um uso referencial como <<O Sacro Império Romano>>, com as iniciais maiúsculas, não passa de um título e não de uma descrição, Donnellan mostra que há casos de descrições usadas para darem atenção a um indivíduo particular.

Tomemos a expressão “O homicida do Ferreira é louco”. Podemos notar que se trata de um uso atributivo, já que pretende dizer que quem cometeu o terrível crime de matar o Ferreira é louco (atribui o predicado louco ao homicida). Mas, alguém (o Pedro) poderia estar a ver o julgamento, sem conhecer nada do réu, e fazer a afirmação: “O homicida do Ferreira é louco”, pois ele vê que os olhos do homem estão revirando e, dessa forma, Pedro se refere ao réu independentemente dos atributos (ele poderia estar apontando para o assassino). Conforme Lycan, o que Pedro afirma é verdadeiro se e somente se o réu for louco, independentemente de ter ou não cometido o homicídio. A isso Donnellan chama uso referencial.

Se Russell escreve como se todas as descrições fossem usadas atributivamente, Strawson relegou o uso atributivo ao enfocar o contexto de referência. Esse duplo aspecto leva à conclusão de que há ambiguidade quanto às descrições definidas. No uso referencial, o público escolhe do que se está a falar e esse uso não ocorre essencialmente, mas para chamar a atenção acerca daquela pessoa. Então, <<O F é g>>, para Donnellan, se nada é F, de nada se disse que é g (uso atributivo, isso não se aplica para o uso referencial, já que não se referencia nada).

Por outro lado, na festa há uma mulher com um acompanhante sobre o qual se diz “O marido dela lhe dá muita atenção”[iii]. Ocorre que o acompanhante é referido mesmo a mulher não sendo casada e esse é o conceito de referente semântico: aquele que satisfaz a descrição (portanto nenhum, já que ela não é casada) e que diverge do referente real[iv]. Conclui-se que, para Donnellan, não importa se não houver homicida do Ferreira, o que se disse é verdadeiro se e somente se Joaquim é louco.

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A respeito de Kripke, Ruffino mostra que ele[v] não considera descrições definidas na análise dos nomes próprios, mas apenas seu nome ordinário[vi]. Ruffino reforça que duas condições para que uma descrição definida funcione bem são a existência e a unicidade, o que foi questionado por Donnellan, para quem isso nem sempre ocorre, embora Kripke não tenho levado isso a sério. Em seu ensaio (1966), Donnellan diz que, às vezes, fazemos referência a um objeto embora a condição de existência não seja satisfeita (aqui ele cita o exemplo do título desse texto).

Ruffino enfatiza que o falante refere, o locutor entende e a conversa continua. É possível ser bem-sucedido em se referir e se comunicar mesmo usando uma descrição errada[vii]. Tudo funciona bem na comunicação mesmo com a descrição defectiva. Esse é o uso referencial de uma descrição definida quando, pelo exemplo de Ruffino, você está em um saguão esperando uma palestra começar e passa um rapaz de terno e gravata, do que você diz: “O palestrante chegou” e seu colega entende que a pessoa chegou, mas você estava errado, ele não é o palestrante.

Nesse caso mencionado, o conteúdo da descrição ou falha ou é irrelevante. Já no uso atributivo da descrição definida o conteúdo descritivo é essencial. Se ora funciona um uso e ora outro, é o caso de que a teoria de Frege-Russell falha, mas Kripke não considera esses casos e explica que esse ponto é uma questão de pragmática, pois é uma questão prática, já a semântica é uma questão mais restrita, que requer características precisas. Essa circunscrição da semântica com relação à pragmática ainda será nosso tema.



[i] Enalta-se o didatismo de Ruffino a respeito do argumento mas, ainda assim, nosso texto só toca a superfície do problema. Conforme https://www.youtube.com/embed/wRhexp8nqR4, acesso em 25/06/2023.

[ii] Aqui argumenta-se conforme nosso entendimento de Lycan, embora muita coisa fique de fora. Filosofia da linguagem: uma introdução contemporânea. LYCAN, William. Tradução Desiderio Murcho. Portugal: Edições 70, 2022.

[iii] Conforme Lycan, esse exemplo é de Leonard Linsky.

[iv] Seria uma referência fraca ou pseudo referência?

[v] Em Name and Necessity.

[vi] Considera como nome "Emmanuel Macron", mas não considera da mesma forma “O atual presidente da França”, como em O F é g. Ora, como Ruffino também mostrará, para Frege-Russell é a descrição que liga o nome ao objeto

[vii] Isso enseja a ideia de que pessoas conversam e se entendem independentemente de estarem usando descrições corretas. Seria terraplanismo?

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