domingo, 11 de junho de 2023

Autoimagem compartilhada

Mostra um caminho que possibilita achar uma imagem de “eu” que pode ser compartilhada[i]

Em sua análise dos indexicais, Costa nos apresenta o conceito de pessoa como o conteúdo do eu. Os indexicais, como ele define, são termos singulares que servem para identificar particulares, como por exemplo, os demonstrativos “este” e “aquele”, os advérbios “aqui” e “agora” ou o pronome pessoal “eu”, o qual focaremos nesse texto.

Para Costa, é por meio dos indexicais que a linguagem toca a realidade, o que fica bem evidente quando dizemos “Dai-me esta caneta”. O “esta” indica o objeto próximo ao falante e, quando acompanhado pelo gesto de ostensão, aquele que aponta para a caneta, deixa mais evidente o contato com a realidade, mediante a linguagem.

Contudo, termos ou sentenças indexicais têm a características de variarem o sentido conforme o contexto: “Hoje é sexta-feira” é verdade em uma sexta-feira, mas não é verdade em um sábado. Costa define duas espécies de significado para os indexicais: a função lexical, que é o significado linguístico e o conteúdo semântico que é o sentido[ii].

Ora, a função lexical é o sentido literal do termo, invariante: no caso do “eu” é o falante. Essa é a regra, “eu” sempre se refere à pessoa que o profere no momento que profere. Porém, a função lexical é insuficiente quando há significação, pois ele é diferente quando dito por pessoas diversas. É aí que aparece a segunda espécie de significado do indexical: o conteúdo semântico que varia com o contexto de proferimento, levando em conta a situação real de fala[iii].

Esse segundo significado traz a referência do “eu” e que pode dizer tanto quanto o nome próprio diz. Como está associado à pessoa que diz, seu conteúdo semântico é o objeto, o ser humano[iv]. É aí que Costa reflete que, para entender pronomes pessoais, precisamos primeiro entender o que é uma pessoa qualquer e depois situá-la em um contexto, adicionar um sexo ou gênero, idade e etc. Resume-se em um “eu” + regra de identificação e aplicá-los em um contexto espaciotemporal, que é aquele compartilhado por todos nós.

Para Costa, é uma certa pessoa, conceito como postulado por Strawson, que é o objeto real de referência do pronome pessoal eu. Essa pessoa é empírica, espaciotemporal e psicológica, composta por uma mente humana e um corpo físico biológico. O eu, nessa definição, é um “eu” “palpável”, isto é, um eu que pode ser compartilhado e que supera o eu fugidio de Hume ou o eu intangível de Kant.

A fortaleza do conceito de Pessoa de Strawson, reside no fato de que ele é um conceito primitivo (possui primitividade lógica), quer dizer, ele vem antes de uma propriedade mental ou física, esses sim, dele dependentes. Conforme ele: “O que temos de reconhecer, ..., é a primitividade do conceito de pessoa.” (p. 144)[v] É a um indivíduo que são aplicados predicados atribuidores tanto de estados de consciência quanto de características físicas.

É por tal conceito que Costa supera (e mesmo Strawson) o “eu” humiano, aquele fluxo de sensações que pode ser constituído a partir de uma autoimagem que de nós fazemos, pelo acúmulo de nossas ideias, memorias e convicções, de maneira indireta a partir do fluxo[vi]. Segundo Costa, há uma constituição egóica psicológica que, se no todo é considerada transcendental por Kant, pode ser conhecida “por partes”. Essa constituição não é a totalidade porque o “eu” não pode, ao mesmo tempo, ser observado e observador, e sim o oposto, forma uma ideia de si no tempo. Citemos Costa:

“Quando penso em meu próprio eu, porém, é naquilo que sou, é no que poderíamos chamar uma constituição egóica subjetiva pertencendo à minha pessoa e que sou capaz de experienciar diretamente como um todo, mas da qual formo uma ideia com base em estados mentais que se reiteram, que são mais ou menos interrelacionados, que por vezes me vêm à mente e aos quais posso me referir”. (p. 32)

Essa constituição subjetiva faz parte da trinca que será conceituada por Costa em sua teoria: ela se refere ao léxico e será instanciada por um conteúdo semântico que é uma pessoa particular [pensável] e que, no ato da referência, aponta a uma pessoa real correspondente (caso haja). Tudo isso mostra como a linguagem toca à realidade e como a Filosofia da Linguagem não evita uma ontologia, por mais que tenham sido feitos esforços analíticos[vii].



[i] Toma por base a argumentação presente em COSTA, C. Cognitivismo Semântico: Filosofia Da Linguagem Sob Nova Chave. Curitiba: Editora Appris, 2022.

[ii] Embora pareça que para Kaplan eles sejam um só, o caráter, como será abordado por Costa mais a frente, mas não nessa comunicação.

[iii] Um exemplo que Costa usa é bem figurativo. É uma situação em que o doente recebe uma visita que diz: “Eu estou aqui”. Esse “eu”, em casos como este, vem carregado de significado, é um “eu” que tem uma história implícita entre falante e ouvinte, visita e doente, e que traz conforto. Há também o contraexemplo do animal que diz “Eu me chamo Loro”, que empobrece o sentido.

[iv] Aqui não entraremos na questão principal de Costa que é a de discutir a teoria da referência direta que ele pretende superar, por meio de um cognitivismo neofregeano. Sobre isso, esperamos falar.

[v] STRAWSON, P. Indivíduos: Um ensaio de metafísica descritiva. São Paulo: Editora UNESP, 2020

[vi] Último parágrafo aponta para esse problema: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2015/08/ceticismo-alegre-e-modesto.html.

[vii] Lembrar que Sagid divide o tema em problemas descritivos e fundacionais, conforme introdução: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2022/10/filosofia-da-linguagem-introducao-e.html.

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