terça-feira, 20 de agosto de 2024

A terceira margem do rio

Sobre filosofia da mente, com uma pitada de ceticismo, linguagem e que tais[i]

Mote. Vamos tentar investigar se, quando Dennett assume uma postura perante a linguagem comum e outra perante a linguagem científica, se ele está em uma postura cética. A postura cética é aquela que nos deixa viver da seguinte forma: “eu sei que tem um problema ali, mas eu consigo conviver com ele”[ii]. Até se aproxima de uma postura existencial, a lá Camus: “eu não tenho garantias de nada, tudo é muito misterioso, devo me matar?”. Ora, a postura cética não deixa de estar associada à linguagem, pois devemos evitar termos ou os parafrasear, como vamos ver com a substituição de “mente” por “cabeça” em asserções como: “o que tenho na mente?” e “O que tenho na cabeça?”.

Consciência[iii] (p. 13). Parece que o materialismo trata o mental como algo apenas cerebral. Porém, não podemos nos privar da consciência, segundo Chalmers. De outro modo, seríamos zumbis[iv], ou seja, pessoas que andam por aí sem estar exatamente consciente do que fazem. Para Chalmers, há consciência e ela é um fenômeno irredutível no mundo, assim, com o tempo, espaço e outras coisas[v]. Dennett se insere nesse campo trazendo a visão de que é possível elucidar o que é a consciência pela investigação científica, pela neurociência, ou seja, “abrindo” o cérebro para ver o que tem dentro. Ou, enfim, pela evolução dos estudos de imagens cerebrais[vi]. Ora, essa linha de investigação pode abalar o campo filosófico já que a filosofia, pela sua primazia, trata os temas de maneira conceitual e, voltando nosso olhar estritamente para a ciência como ferramenta para resolução das questões, poderia não sobrar espaço para a reflexão filosófica (p. 15).

Estudo da mente. Se o estudo do mental remete às origens da filosofia[vii], ele se reacende por volta dos anos 50 do século passado, até pelo aporte do viés empírico, seja pela via da inteligência artificial e neurociência[viii]. Entretanto, não podemos esquecer do debate entre dualismo e materialismo que vem dos modernos (p. 17). Quando Descartes separa a mente do corpo cria-se o problema de explicar como instâncias separadas e de diferentes composições podem se comunicar[ix]. Por outro lado, Hobbes entende que não há tal estado de coisas porque o pensamento é um resultado do movimento corporal, então o mental faz parte do físico[x]. Aí se configura essa disputa entre dualismo e materialismo, ambas as teses muito difíceis de serem defendidas em sua totalidade. Com a atualização dos termos mente e corpo para mente e cérebro, mais especificamente.

Naturalismo e linguagem (p. 18). Dennett adota uma postura naturalista, dada sua filiação a Quine, enxergando que os problemas podem ser resolvidos pela ciência, no sentido do naturalismo científico[xi]. Enfatizando o papel da linguagem em tal semântica, cabe aludirmos a como Ryle trata o tema, de maneira deflacionária[xii]. Resumidamente, cotidianamente utilizamos a expressão “na” cabeça metaforicamente, por exemplo, ao dizermos: “fiz aquela conta de cabeça”. Ocorre que, de fato, na cabeça há o cérebro, há sangue e pode haver óculos ou chapéu. Mas, ainda assim, é preferível que se use “na cabeça” do que na “mente” já que essa palavra vem carregada de ontologia, como um lugar estranho, mas cujo significado poderia ser simplificado se dispensássemos seu uso.

Matematização da vida e a questão psicológica (p. 19). A análise lógica da psicologia revela que ela não é exata, isso nos moldes da ciência moderna redefinida por Galileu e Newton, quando se matematiza a natureza pelo mapeamento dos fenômenos naturais em leis matemáticas e físicas, a partir daí podemos trabalhar com números e fazer previsões e predições[xiii]. Uma dificuldade da psicologia são os termos que ela usa e a dificuldade de localização desses termos. Por exemplo, termos como ansiedade ou inveja não se referem a coisas que se encontram no mundo, como é feito nas ditas ciências naturais, matematizantes. Isso mostra que o mental não se reduz ao físico e há necessidade de termos intencionais que tratam do seu significado e termos não intencionais, regidos pela ciência natural. Conceitualmente, se aproximam da distinção de Frege de sentido e referência, ou seja, a extensão é a coisa e a intensão é o significado da coisa[xiv]. Mas é nessa distinção que reside o problema da psicologia, porque acaba sendo um discurso permeado pela vagueza, porque, como os termos significam, o significado é dependente do contexto. Para que o discurso psicológico se tornasse científico, ele teria que renunciar à intencionalidade com “s”, que é exatamente os termos que estão presentes no seu discurso.

Domínio do virtual (p. 22). Qual que é a solução do Dennett? Vamos investigar mais detidamente como Teixeira, mas parece que Dennett passa essa conceituação para o domínio do virtual, por exemplo, falar da mente como algo virtual, que estaria no campo do intencional com “s”, mas que não teria existência própria, ou seja, é como se fosse um recurso de linguagem, um constructo de conversação. Os exemplos do dia a dia são abundantes: todos nós usamos muitos artifícios em uma conversa e que muitas vezes não se referem às coisas, mas se refere a significados, que podem ser significados pessoais, introspectivos e subjetivos, significados que não tem uma aderência de fato compartilhada. Por outro lado, não nos esqueçamos do alerta de Russell de que ficaríamos presos em um discurso totalmente ancorado e cristalino, ele poderia aniquilar comunicação, porque não sobraria margem para a interpretação[xv].

Uma porta aberta para a IA forte (p. 23). Ora, como os termos intensionais são constructos, esses termos mentais e o aparato que é utilizado na psicologia poderia ser aplicado para dispositivos também. Esse recurso nos permite um afastamento do daquele terreno que é muito o dogmático de se falar de “pensamento” somente de humanos e podemos verificar também se máquinas podem pensar. Passa-se para uma questão de linguagem que flexibiliza o uso do termo “pensar” [xvi].

A terceira margem do rio (p. 24). Por fim, Dennett. Teixeira ressalta Dennett não é um dualista, mas também não é um fisicalista reducionista porque ele postula um sistema intencional e um sistema do virtual que não se reduz ao fisicalismo. Parece que assim ele consegue compatibilizar tanto uma psicologia popular quanto uma física estrita. É a terceira margem do rio que precisaremos investigar mais detidamente.



[i] Com base na Introdução de A mente segundo Dennett, de, João de Fernandes Teixeira. São Paulo: Editora Perspectiva, 2008.

[ii] “Ocorre que a posição cética, ao duvidar das afirmações e das coisas, pode colocar nossa existência em risco. Ora, como podemos viver duvidando de tudo? A resposta cética parece ser a de uma atitude filosófica: aceitamos as coisas da vida ordinária e vivemos nos baseando nela, porém dentro de uma atitude filosófica mantemos a dúvida.”. Em https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2024/04/pesquisa-sobre-atitude-filosofica-cetica.html.

[iii] Já em 2020 tínhamos problema com ela: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2020/03/uma-consciencia-uma-dificuldade.html. Na verdade, muito antes, na escola de filosofia.

[v] Fizemos uma aproximação do pensamento de Chalmers, mas devemos aprofundar para compreender as colocações de Teixeira: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2016/05/a-informacao-como-lei-da-consciencia.html.

[vii] Vai valer a pena olharmos o “De anima”: https://www.editora34.com.br/detalhe.asp?id=340, “Primeiro estudo sistemático da psykhê, entendida aqui como o princípio vital comum a todos os seres animados, o tratado De Anima (literalmente, "Sobre a Alma") representa o ponto culminante da filosofia natural de Aristóteles e está na origem tanto da biologia quanto da psicologia como disciplinas teóricas.”

[viii] Não nos esqueçamos das críticas de Dreyfus: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2020/06/ia-do-representacao-cognitiva-ao.html.

[ix] A chamada causação mental, já bastante explorada nesse espaço, pode ser acompanhada nesse texto https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2018/03/nao-estamos-no-comando.html, e pretendemos voltar ao assunto para ver as contribuições de Monica Aiub e Jonas Gonçalves Coelho com aplicações mais práticas. Ver https://youtu.be/sT7Ldtu8k1s.

[xi] Aspectos gerais da proposta de Quine: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2023/11/teses-quineanas.html.

[xii] Conforme https://youtu.be/gfp7cm3NtP8?t=433, por Mariana Claudia Broens, UNESP, Marília. Mentes são lugares onde moram as representações.

[xiv] Em maio de 2022 verificamos a teoria fregeana: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2022/05/.

[xv] Conforme https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2024/03/o-conhecimento-por-familiaridade-de.html, “Seria completa e inacreditavelmente inconveniente ter uma linguagem não ambígua”

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