sábado, 9 de março de 2024

O conhecimento por familiaridade de Bertrand Russell

Mostra como a epistemologia de Russell interfere em sua teoria da linguagem[i]

Hacking traz citação inicial de Russel sobre temas de linguagem (lógica do sujeito-predicado, significado dos nomes próprios representando entidades) para dizer que a metafísica se expressa por ela[ii]. Passando para a argumentação mais detalhada de Hacking, o autor argumenta que Russell rejeita a teoria das ideias dos modernos, mas postula que o conhecimento por familiaridade vem de objetos imediatos da experiência. Nesse sentido, o significado de um nome próprio é o próprio homem, aquele que nos referimos apontando. Hacking nos lembra que, tanto Frege quanto Russell, desconsideram a ideia associada ao significado, mas, se concordam que o nome refere, Russell rejeita os significados públicos (Sinn) que não sejam a própria referência.

Tomando exemplo de Hacking, o significado do “malmequer laranja ali adiante” é o próprio malmequer, já “laranja” denota[iii] um universal abstrato do qual temos familiaridade (acquaintance). Esses universais são representados pelas palavras do dicionário e se enquadram bem a predicados, porém não a sujeitos. Por exemplo, “a montanha dourada” seria para Russell um objeto mental independente. Esse objeto, assim como números ou os deuses homéricos devem ser de um certo tipo para que possamos usá-los em proposições. Reparemos que nem todos esses “seres” “existem”. Mas, em “On Denoting”, ele dirá que não há referência, nesses casos. E Hacking evoca as famosas paráfrases: “Não é o caso que alguma coisa seja uma montanha dourada” não se refere a algo e “a montanha dourada não existe” que parece ter o mesmo significado só aparentemente tem a forma sujeito-predicado, mas logicamente quer dizer “Não é o caso que alguma coisa seja uma montanha dourada”. Assim como o famoso “atual rei da França” que é uma descrição que pretende denotar um indivíduo como “o malmequer” de fato denota. São as descrições definidas do tipo “o F” que parecem um sujeito gramatical, mas se comprovam sujeitos lógicos passando pela análise “o F é G”.

Sobre Stalin, Russell usa esse nome próprio significativamente como bom referencialista, mas fundamentalmente por sua epistemologia, por tê-lo conhecido. Nós, que não o conhecemos, precisamos de uma descrição definida de Stalin para nos comunicarmos, já que não temos o objeto imediato. A descrição definida significa o nome próprio e cada pessoa pode ter uma. Aí “Stalin”, uma palavra, pode ter diferentes significados e é pela ambuiguidade que nos comunicamos. Conforme Russell, “Seria completa e inacreditavelmente inconveniente ter uma linguagem não ambígua” (p. 80). Hacking destaca que a epistemologia de Russell leva sua teoria referencial a ter significados essencialmente privados. Mas Hacking insiste que uma teoria do significado é sobre o que é público, aquilo que Frege chamou Sinn e que permite nossa comunicação. Já a teoria de Russell depende da ambiguidade. E o mais irônico é que o idealista Locke reconhecia a aceitação comum dos termos.

Ora, na visão russelliana, nos referimos apenas a objetos imediatos, porém eles ficam restritos a nós como nomes próprios, uma vez comunicados são descrições que podem conter erros. E tal visão soa como contrassenso, já que aproxima Russell de Berkeley, problematicamente no ponto em que Russell fundamenta o conhecimento na “consciência distinta”. Mais do que isso, ao falarmos de um giz, conforme exemplo que Hacking tira de Russell, não falamos do objeto físico, mas do dado sensorial: “um isto”. E, conforme Hacking: “a palavra isto pode ser usada como um nome próprio”. É um nome que se dá a algo que estamos familiarizados no momento, é um nome próprio que é ambíguo porque pode não significar a mesma coisa em diferentes momentos.

Se parece que um nome próprio é usado significativamente por representar uma entidade, nessa teoria da linguagem não existe tal entidade, mas construções lógicas a partir delas, todas as vezes que dizemos “isto”. E, se uma expressão significa o que denota, poucas expressões têm significado por dependerem de estarmos familiarizados com a referência. Aqui, não há sentido fregeano. Por outro lado, Strawson sustenta que a linguagem depende de dizermos as coisas sobre corpos existentes (em “Individuals”). De toda forma, Russell se livra da ontologia substância-atributo. O uso de quantificadores na teoria das descrições elimina os sujeitos das sentenças[iv]. Isso pode significar que tal metafísica é um artefato da linguagem, não da realidade. Mas, por mais que pudéssemos seguir pelo caminho da metafísica de Strawson, Hacking se fiará na “forma lógica” proposta por Russell como sustentáculo da forma gramatical.



[i] Fichamento do sétimo capítulo de Por que a linguagem interessa à filosofia? São Paulo: Editora Unesp, 1999. Ian Hacking. Esse capítulo é bem denso porque supõe conhecimentos já explorados nesse blog, como as teorias da linguagem de Frege e Russell assim como uma compreensão da teoria das ideias dos modernos.

[ii] Se na matemática Russell parece crer que os fundamentos se explicam pelas conclusões, em sua epistemologia, seguindo caminho semelhante, a natureza do conhecimento vem dos sentidos.

[iii] Diferente do que se pensou em grande medida de Aristóteles em diante, conforme Hacking.

[iv] Quine terá aprofundado isso em Palavra e Objeto, conforme Hacking. 

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