segunda-feira, 4 de março de 2024

O inatismo de Noam Chomsky

Entre o inatismo de Descartes e o de Chomsky[i]

Hacking começa dizendo que, no século XX, a filosofia parece se preocupar com os significados haja a vista de perda de interesse nas ideias associadas aos sentidos e, contrariamente, o destaque para o significado público[ii]. Porém, Hacking nos lembra da controvérsia das ideias inatas levantada por Chomsky. Ora, lembremos que essa querela divide Aristóteles e Locke, para quem a alma é tábula rasa e Platão e Leibniz defendendo que já há princípios na alma.

A análise da questão poderia começar com a investigação de como uma criança começa a falar, mas ela rapidamente pode supor grandes diferenças entre racionalistas e empiristas. De um lado, a criança se compara a tábua de cera que é escrita passivamente e, de outro, ao bloco do mármore que já tem veios. Ocorre que, pelo empirismo, todo o conhecimento vem da experiência em um processo de aprendizado que é feito não somente de dizer palavras (“fome!”), mas também aprender uma gramática que permite pronunciar sentenças. Nesse processo há abstração muitas vezes negada pelo empirismo ingênuo. Para o racionalismo, as ideias inatas revelam tendências ou predisposições a certas características. Por mais que a distinção não seja tão distante, o racionalismo admite que conhecimentos vêm da experiência e o empirista que temos capacidades naturais.

Hacking destaca, então, duas questões de interesse provenientes da querela: aplicações na matemática e filosofia da percepção. Para Descartes nos tocam partículas, movimentos corpóreos, mas as ideias de cor, dor e som nos são inatas, ao contrário de Locke que considerava que essas características são abstraídas por nós. Assim como já temos a ideia do “triângulo verdadeiro” dentro de nós, que é apreendida a partir de triângulos imperfeitos do mundo. No Menon, Platão já usa esse expediente, isto é, despertar conhecimentos a priori pela argumentação e não pela experiência. Pelas provas matemáticas podemos prever propriedades de números e formas, além de sua necessidade universal comprovada por Leibniz, já que a experiência só nos dá contraexemplos particulares e os princípios não estão neles.

Hacking acrescenta que a abstração da experiência não permitiria, de acordo com o racionalista, abranger todas as propriedades de um triângulo. “Apenas as ideias inatas podem explicar verdades necessárias e conhecimento a priori” (p. 69). Ora, se para Descartes as ideias inatas provêm de partículas que excitam terminações nervosas, ainda assim há um vínculo material que será descartado por Berkeley e seu idealismo que solapa a presença de um mundo material[iii]. Já para Geach, séculos depois, há impossibilidade de abstração porque não há coisas semelhantes, há similaridade em alguns aspectos como a cor, por exemplo. E, para isso, deve haver um conceito de cor. Mas mesmo esses aspectos se misturam, não são inequívocos.

No processo de abstração há muitas características e o que procuramos aí se subdetermina, não obstante possa estar em linha com nossos mecanismos inatos. Esse caráter subdeterminado da experiência é usado por Chomsky para caracterizar a gramática (do inglês) que fica subdeterminada quando coisas são ditas na frente de uma criança. De posse dessa gramática elas podem proferir sentenças inteiramente novas por uma habilidade considerada por ele inata. Há, então, uma estrutura que é subjacente a toda língua e a criança com uma disposição virtual de aprender qualquer uma delas. O ponto comum no inatismo de Chomsky e o cartesianismo é a busca pelo que nos diferencia dos outros animais. Descartes via um mundo mecânico do qual nosso organismo participa e pode agir como uma máquina, exceto pela fala. Essa é uma capacidade única humana que Chomsky chama de “aspecto criativo do uso de linguagem”.

Assim Chomsky cria um programa de pesquisa em linguística que busca explicitar a gramática inata da espécie humana e que se diferencia frontalmente do “olhar para ver” dos modernos[iv]. Na proposta de Chomsky há uma teoria que pode ser confirmada ou refutada pela observação na qual “as explicações devem ser determinadas pelo que se possa ser teoricamente atribuído a uma criança” (p. 73) – enfoque inatista. Nesse inatismo os conceitos não estão “lá” (Descartes), mas a habilidade evolucionária de adquirir linguagem.

Hacking conclui ressaltando que, se a fala nos distingue, a linguagem interessa à filosofia. Entretanto, para além da comunicação ou significado, o estudo da natureza da linguagem pode nos levar para a natureza da mente, ou da própria realidade.



[i] Fichamento do sexto capítulo de Por que a linguagem interessa à filosofia? São Paulo: Editora Unesp, 1999. Ian Hacking.

[iv] Conforme https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2024/01/as-ideias-de-port-royal.html (“raciocinar sobre ideias é como ver”). 

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