Entre o inatismo de Descartes e o de Chomsky[i]
Hacking começa dizendo que, no século XX,
a filosofia parece se preocupar com os significados haja a vista de perda de interesse
nas ideias associadas aos sentidos e, contrariamente, o destaque para o significado
público[ii]. Porém, Hacking nos lembra
da controvérsia das ideias inatas levantada por Chomsky. Ora, lembremos que essa
querela divide Aristóteles e Locke, para quem a alma é tábula rasa e Platão e
Leibniz defendendo que já há princípios na alma.
A análise da questão poderia começar com a
investigação de como uma criança começa a falar, mas ela rapidamente pode supor
grandes diferenças entre racionalistas e empiristas. De um lado, a criança se
compara a tábua de cera que é escrita passivamente e, de outro, ao bloco do
mármore que já tem veios. Ocorre que, pelo empirismo, todo o conhecimento vem
da experiência em um processo de aprendizado que é feito não somente de dizer
palavras (“fome!”), mas também aprender uma gramática que permite pronunciar sentenças.
Nesse processo há abstração muitas vezes negada pelo empirismo ingênuo. Para o
racionalismo, as ideias inatas revelam tendências ou predisposições a certas características.
Por mais que a distinção não seja tão distante, o racionalismo admite que conhecimentos
vêm da experiência e o empirista que temos capacidades naturais.
Hacking destaca, então, duas questões de
interesse provenientes da querela: aplicações na matemática e filosofia da
percepção. Para Descartes nos tocam partículas, movimentos corpóreos, mas as
ideias de cor, dor e som nos são inatas, ao contrário de Locke que considerava
que essas características são abstraídas por nós. Assim como já temos a ideia
do “triângulo verdadeiro” dentro de nós, que é apreendida a partir de triângulos
imperfeitos do mundo. No Menon, Platão já usa esse expediente, isto é, despertar
conhecimentos a priori pela argumentação e não pela experiência. Pelas provas
matemáticas podemos prever propriedades de números e formas, além de sua
necessidade universal comprovada por Leibniz, já que a experiência só nos dá contraexemplos
particulares e os princípios não estão neles.
Hacking acrescenta que a abstração da
experiência não permitiria, de acordo com o racionalista, abranger todas as
propriedades de um triângulo. “Apenas as ideias inatas podem explicar verdades
necessárias e conhecimento a priori” (p. 69). Ora, se para Descartes as ideias
inatas provêm de partículas que excitam terminações nervosas, ainda assim há um
vínculo material que será descartado por Berkeley e seu idealismo que solapa a presença
de um mundo material[iii].
Já para Geach, séculos depois, há impossibilidade de abstração porque não há
coisas semelhantes, há similaridade em alguns aspectos como a cor, por exemplo.
E, para isso, deve haver um conceito de cor. Mas mesmo esses aspectos se
misturam, não são inequívocos.
No processo de abstração há muitas características
e o que procuramos aí se subdetermina, não obstante possa estar em linha com
nossos mecanismos inatos. Esse caráter subdeterminado da experiência é usado
por Chomsky para caracterizar a gramática (do inglês) que fica subdeterminada quando
coisas são ditas na frente de uma criança. De posse dessa gramática elas podem
proferir sentenças inteiramente novas por uma habilidade considerada por ele
inata. Há, então, uma estrutura que é subjacente a toda língua e a criança com
uma disposição virtual de aprender qualquer uma delas. O ponto comum no
inatismo de Chomsky e o cartesianismo é a busca pelo que nos diferencia dos
outros animais. Descartes via um mundo mecânico do qual nosso organismo
participa e pode agir como uma máquina, exceto pela fala. Essa é uma capacidade
única humana que Chomsky chama de “aspecto criativo do uso de linguagem”.
Assim Chomsky cria um programa de pesquisa
em linguística que busca explicitar a gramática inata da espécie humana e que
se diferencia frontalmente do “olhar para ver” dos modernos[iv]. Na proposta de Chomsky
há uma teoria que pode ser confirmada ou refutada pela observação na qual “as
explicações devem ser determinadas pelo que se possa ser teoricamente atribuído
a uma criança” (p. 73) – enfoque inatista. Nesse inatismo os conceitos não estão
“lá” (Descartes), mas a habilidade evolucionária de adquirir linguagem.
Hacking conclui ressaltando que, se a fala
nos distingue, a linguagem interessa à filosofia. Entretanto, para além da comunicação
ou significado, o estudo da natureza da linguagem pode nos levar para a
natureza da mente, ou da própria realidade.
[i] Fichamento do sexto capítulo de Por
que a linguagem interessa à filosofia? São Paulo: Editora Unesp, 1999. Ian
Hacking.
[ii] Recapitulação:
https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2024/03/hacking-estrategia-e-apogeu-das-ideias.html.
[iii] Empirismo idealista: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2024/01/breves-ideias-sobre-locke-berkeley.html.
[iv] Conforme https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2024/01/as-ideias-de-port-royal.html (“raciocinar sobre ideias é como ver”).
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