quarta-feira, 20 de agosto de 2025

Estruturas perceptivas e inferenciais

Nós não vemos as mesmas coisas e isso é, preferencialmente, uma questão de linguagem[i]

Uma distinção entre ver e enxergar. Você vê, mas enxerga? O ato de ver algo quer dizer que sabemos o que estamos vendo (enxergamos?)? Por exemplo, uma pessoa que, não sabendo latim, olha para uma página com um texto em latim, não compreende o que está vendo, porém ao olhar para a mesma página em português, se conhecedora da língua, entenderá. É como quando estamos tentando explicar algo para alguém e dizemos: “ali, ó! Não está vendo?”. E por aí vai, com conhecimentos gerais ou específicos das mais variadas áreas, como no contraste da experiência entre um crítico de arte visualizando uma obra e um leigo que vai ao museu pela primeira vez. Se parece óbvio para alguns é inalcançável para outros.

Experiência sensória e conhecimento epistêmico. Então, há um ato fisiológico de perceber as coisas pela experiência sensória (o que chamei de ver), mas há algo além desse ato, como postula Wilfrid Sellars[ii], que é um tipo de conhecimento de natureza epistêmica (o que chamei de enxergar), como uma razão ou crença justificada[iii], cuja primazia é sua natureza inferencial. O conceito primordial de Sellars é a percepção e, para ele, não existe percepção não conceitual.  Não se pode negar, conforme argumenta Pettersen, a natureza causal da experiência, mas ela, por si só, não representa conhecimento porque ele requer uma estrutura que possa articular essa experiência.

Mito do dado. Sellars, conforme argumenta Pettersen, é um crítico do empirismo e formulou o mito do dado: supor que as experiências sensórias per se constituem conhecimento, isto é, supor que ver é saber (ie, enxergar). Com sua crítica, ele recusa que o dado "cru" da experiência é a fonte do conhecimento, como quando citamos que ver um texto em latim não quer dizer que o compreendemos. No cerne da argumentação está uma suposta ambiguidade na teoria dos dados dos sentidos[iv], a confusão entre “estar consciente” e “saber”.

Crenças. Na base do nosso conhecimento há crenças, conteúdos mentais que podem ser do tipo “preferir o vermelho ao azul” (uma simples preferência) ou “a lei da gravidade” (uma lei científica) que, baseada em justificativa racional, é o conhecimento do tipo epistêmico que estamos enfatizando, como “saber algo”. Podemos ver coisas e estarmos conscientes delas, como animais ou crianças bem pequenas que não sabem exatamente o que está acontecendo para além de dados particulares que não representam fatos epistêmicos; particulares são experiência não articuladas epistemicamente, não organizadas por uma estrutura conceitual.

O caminho do conhecimento. Se a nossa experiência começa pelo objeto físico, por sentir um conteúdo sensorial, é a partir daí que começamos a ter crenças, um começo de conhecimento, mas que só será inferencial quando há articulação daquela experiência e se pode fazer implicações. Mas, para o empirismo clássico (Hume, Locke e Berkeley), sentir é uma forma de conhecer, salta-se do objeto físico para um conteúdo epistêmico diretamente.

Nominalismo psicológico. Para Sellars e, conforme enfatiza Pettersen, tomando por base o guia de estudos de Brandom, é um caminho que vai do sentir (fisiológico, terminações nervosas) para uma crença não inferencial (psicologia) e só depois que a filosofia atua, no último passo do conhecimento, de crenças inferenciais que ordenam o mundo pela linguagem, no que constitui o nominalismo psicológico, já que é a linguagem que estrutura a nossa psique[v].

Ética. Estamos no campo da ética que já está bem distante do objeto físico. É aí que formulamos conceitos, ou mal os formulamos, como no caso do racismo. De fato, não há diferença entre pessoas pela cor da pele, mas é uma experiência conceitual prévia que o determina, algo cultural, não natural.

Senciência e Sapiência. Por fim, nessa primeira aproximação de Sellars, cabe destacar a diferença entre senciência, no campo do sentir e sapiência, já na esfera da episteme. Para o último caso, cabe dizer que “sei que sei” (enxergo), enquanto o primeiro só sabe (vejo), mas não sabe que sabe. Como as crianças fera[vi] criadas por animais e, quando resgatadas, não têm nenhum conceito – uma crítica ao inatismo.



[i] Reflexão introdutória a partir das aulas de https://www.youtube.com/@brunopettersen, Bruno Pettersen: Sellars – Empirismo e Filosofia da Mente.

[ii] De acordo com a Wikipedia, Wilfrid Stalker Sellars foi um filósofo americano, ligado à Universidade de Pittsburgh desde 1963 até à sua morte e que apresentou a doutrina do nominalismo psicológico, segundo a qual todo o estar ciente é uma questão linguística.

[iii] Recupera-se, aqui, a tese platônica de que conhecimento é crença verdadeira justificada.

[iv] Interessante que dados dos sentidos vêm de Russell, mas ele já separa a tese de Berkeley que misturou o dado com o sentido.

[v] Esta visão estaria associada Husserl e Merleau-Ponty, de acordo com Pettersen.

[vi] https://pt.wikipedia.org/wiki/Crian%C3%A7a_selvagem: Crianças selvagens são crianças que logo nos primeiros anos de vida passaram a viver em completo isolamento da humanidade. São crianças que depois de pouco tempo de vida se perdem da população, vivem como animais, não falam e não andam como pessoas socializadas. Tais histórias se originaram de relatos relativamente comuns no século XVIII, que descreviam crianças encontradas no campo, tidas como sobreviventes por circunstâncias especiais, desde os primeiros anos de vida, criadas por animais, sem contato com humanos e assim se tornando selvagens.