domingo, 31 de agosto de 2025

Física e metafísica

Entre conceitos e a realidade

Todos nós cremos saber que a física é a ciência que trata das leis da natureza. Mas, espera aí, natureza? O que é isso? Ora, é a partir dessa questão que podemos falar da metafísica. A natureza é “apenas” um conceito físico ou é de fato uma “realidade” do mundo? Massa, gravidade, elétron e tantas outras quantidades, forças e partículas. São todos termos dos quais a física se utiliza para formular suas equações, mas se trata de abstrações ou de coisas? Diga-me, o que são elétrons? Alguém já viu algum deles por aí?

Podemos remeter a origem da metafísica a Aristóteles. Conta-se que Andrônico de Rodes, ao classificar as obras do estagirita, colocou a filosofia primeira depois das obras de física, Meta[i] Física, ou seja, "depois da Física"[ii]. Se o prefixo “meta” pode significar “além” da física, isto é, algo de outra esfera, quiçá não física, na verdade isso não passaria de uma convenção: o texto “depois” da física. Nos tratados aristotélicos, a física era a filosofia natural[iii], que se ocupava das ciências em geral: matemática, biologia, entre outras, mas a metafísica examinava a realidade última do mundo[iv].

A metafísica grega, então, tinha por propósito qualificar a physis[v] e havia diversas formulações, principalmente entre os chamados pré-socráticos. Para Parmênides, o ser era uno, imutável e Heráclito postulou que tudo estava em constante mudança[vi]. Já Platão acreditava numa realidade de essências da qual o nosso mundo sensível (aqui de baixo?) seria uma mera cópia[vii].

Durante a idade média, pode ser que a metafísica tenha se confundido com a religião e, no renascimento, houve tentativas de separar física e metafísica até que os positivistas do início do século passado resolveram que ela deveria ser abolida, que se perdia em discussões infindáveis e que atrapalhavam a ciência[viii]. Mas, dá para fazer física sem metafísica? É possível defender uma teoria, como a quântica, sem falar sobre a “realidade” das coisas?

Se parece que metafísica é um mito, uma boa porcentagem dos pesquisadores atualmente a endossam[ix]. Afinal, como podemos falar da consciência do observador[x]? É um tanto complicado, porém, em um sistema quântico, as partículas estão dispersas e não temos certeza de onde elas estão, até que a vejamos. Acontece que esse ver, não é o ver da consciência, pode ser um aparelho de medição, mas é nesse momento que elas assumem um estado. Interessante né? Mas tudo isso são conceitos, apenas?

Voltemos à questão inicial: natureza, o que é? Para um povo originário austral-andino a natureza é uma divindade, para os animais é seu habitat primordial, mas, para um engenheiro civil ela é fonte de matéria-prima. Na física quântica a matéria é ondulatória, mas até que estágio, ou, até que tamanho de objeto as leis quânticas se aplicam? São questões que estão para além da física.

Um sistema físico, da mecânica moderna é determinado. Mas o mundo é determinado ou há livre-arbítrio? São perguntas que devem estar entrelaçadas, são questões de “realidade” com as quais uma física responsável deveria se comprometer. Afinal, não há ciência neutra como quiseram nos fazer crer alguns, já que o juízo de valor está na base de qualquer ação humana.



[i] Esse prefixo pode ter vários significados: “atrás, depois”; “alterado, mudado”; “além, mais alto’; “no meio de, à busca de”. Deriva do Indo-Europeu ME-, “meio”. https://origemdapalavra.com.br/palavras/meta/.

[iv] “Uma metafísica é uma teoria que visa explicar a totalidade das coisas ou do que o mundo é feito, a chamada mobília do mundo”, https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2024/11/alma-feliz.html.

[v] “A pergunta grega clássica “o que é?” revela a physis como substrato por detrás da aparência e que é uma crença básica, anterior ao discurso. Para os gregos, há uma crença na certeza do mundo de onde vem o espanto e a pergunta pelo ser. É a metafisica de Aristóteles, a teoria grega da realidade radical, teoria ontológica que mostra a substância por detrás da aparência.”, https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2021/03/girando-em-torno-da-metafisica.html.

[vi] “Conforme explica Costa, há em Parmênides uma separação entre o conhecimento que vem do ser e o erro causado pelo não ser. Conhece-se o imutável e coloca-se em xeque o mundo da mudança heraclitiano, embora para Heráclito o fundamento último por trás dessa realidade é a razão (logos).”, https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2025/02/o-problema-de-parmenides.html.

[vii] Para Platão, o mundo suprassensível das ideias é o real ao passo que nosso mundo dos sentidos é uma cópia, o que nos levaria a buscar por esse conhecimento beirando um misticismo. Porém, Russell enfatiza que na verdade sua base é lógica e entende as ideias de Platão como universais, em oposição ao particular dado pelos sentidos, e compartilhado por eles, https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2019/06/russell-platonicoi.html.

[viii] “Como principal crítica, os positivistas consideravam as proposições metafisicas como desprovidas de significado, sem conteúdo cognitivo. A base do ataque era lógica e se fundava no critério de verificabilidade da significação, para o qual proposições devem ser [francamente] verificáveis [em princípio] para poderem ter significado, como o são as da matemática e lógica e não as da metafísica”, https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2020/10/o-programa-do-positivismo-logico-i.html.

[ix] Esse dado vem de “Workshop de Filosofia da Física | Osvaldo Pessoa e Vinicius Carvalho”, que motiva essa reflexão e que pretendemos investigar: https://youtu.be/XROQzuXdt5I.

[x] O observador na Física Quântica: o que é mito e o que é ciência, https://youtu.be/D1Hyw9AbLSE.

quarta-feira, 20 de agosto de 2025

Estruturas perceptivas e inferenciais

Nós não vemos as mesmas coisas e isso é, preferencialmente, uma questão de linguagem[i]

Uma distinção entre ver e enxergar. Você vê, mas enxerga? O ato de ver algo quer dizer que sabemos o que estamos vendo (enxergamos?)? Por exemplo, uma pessoa que, não sabendo latim, olha para uma página com um texto em latim, não compreende o que está vendo, porém ao olhar para a mesma página em português, se conhecedora da língua, entenderá. É como quando estamos tentando explicar algo para alguém e dizemos: “ali, ó! Não está vendo?”. E por aí vai, com conhecimentos gerais ou específicos das mais variadas áreas, como no contraste da experiência entre um crítico de arte visualizando uma obra e um leigo que vai ao museu pela primeira vez. Se parece óbvio para alguns é inalcançável para outros.

Experiência sensória e conhecimento epistêmico. Então, há um ato fisiológico de perceber as coisas pela experiência sensória (o que chamei de ver), mas há algo além desse ato, como postula Wilfrid Sellars[ii], que é um tipo de conhecimento de natureza epistêmica (o que chamei de enxergar), como uma razão ou crença justificada[iii], cuja primazia é sua natureza inferencial. O conceito primordial de Sellars é a percepção e, para ele, não existe percepção não conceitual.  Não se pode negar, conforme argumenta Pettersen, a natureza causal da experiência, mas ela, por si só, não representa conhecimento porque ele requer uma estrutura que possa articular essa experiência.

Mito do dado. Sellars, conforme argumenta Pettersen, é um crítico do empirismo e formulou o mito do dado: supor que as experiências sensórias per se constituem conhecimento, isto é, supor que ver é saber (ie, enxergar). Com sua crítica, ele recusa que o dado "cru" da experiência é a fonte do conhecimento, como quando citamos que ver um texto em latim não quer dizer que o compreendemos. No cerne da argumentação está uma suposta ambiguidade na teoria dos dados dos sentidos[iv], a confusão entre “estar consciente” e “saber”.

Crenças. Na base do nosso conhecimento há crenças, conteúdos mentais que podem ser do tipo “preferir o vermelho ao azul” (uma simples preferência) ou “a lei da gravidade” (uma lei científica) que, baseada em justificativa racional, é o conhecimento do tipo epistêmico que estamos enfatizando, como “saber algo”. Podemos ver coisas e estarmos conscientes delas, como animais ou crianças bem pequenas que não sabem exatamente o que está acontecendo para além de dados particulares que não representam fatos epistêmicos; particulares são experiência não articuladas epistemicamente, não organizadas por uma estrutura conceitual.

O caminho do conhecimento. Se a nossa experiência começa pelo objeto físico, por sentir um conteúdo sensorial, é a partir daí que começamos a ter crenças, um começo de conhecimento, mas que só será inferencial quando há articulação daquela experiência e se pode fazer implicações. Mas, para o empirismo clássico (Hume, Locke e Berkeley), sentir é uma forma de conhecer, salta-se do objeto físico para um conteúdo epistêmico diretamente.

Nominalismo psicológico. Para Sellars e, conforme enfatiza Pettersen, tomando por base o guia de estudos de Brandom, é um caminho que vai do sentir (fisiológico, terminações nervosas) para uma crença não inferencial (psicologia) e só depois que a filosofia atua, no último passo do conhecimento, de crenças inferenciais que ordenam o mundo pela linguagem, no que constitui o nominalismo psicológico, já que é a linguagem que estrutura a nossa psique[v].

Ética. Estamos no campo da ética que já está bem distante do objeto físico. É aí que formulamos conceitos, ou mal os formulamos, como no caso do racismo. De fato, não há diferença entre pessoas pela cor da pele, mas é uma experiência conceitual prévia que o determina, algo cultural, não natural.

Senciência e Sapiência. Por fim, nessa primeira aproximação de Sellars, cabe destacar a diferença entre senciência, no campo do sentir e sapiência, já na esfera da episteme. Para o último caso, cabe dizer que “sei que sei” (enxergo), enquanto o primeiro só sabe (vejo), mas não sabe que sabe. Como as crianças fera[vi] criadas por animais e, quando resgatadas, não têm nenhum conceito – uma crítica ao inatismo.



[i] Reflexão introdutória a partir das aulas de https://www.youtube.com/@brunopettersen, Bruno Pettersen: Sellars – Empirismo e Filosofia da Mente.

[ii] De acordo com a Wikipedia, Wilfrid Stalker Sellars foi um filósofo americano, ligado à Universidade de Pittsburgh desde 1963 até à sua morte e que apresentou a doutrina do nominalismo psicológico, segundo a qual todo o estar ciente é uma questão linguística.

[iii] Recupera-se, aqui, a tese platônica de que conhecimento é crença verdadeira justificada.

[iv] Interessante que dados dos sentidos vêm de Russell, mas ele já separa a tese de Berkeley que misturou o dado com o sentido.

[v] Esta visão estaria associada Husserl e Merleau-Ponty, de acordo com Pettersen.

[vi] https://pt.wikipedia.org/wiki/Crian%C3%A7a_selvagem: Crianças selvagens são crianças que logo nos primeiros anos de vida passaram a viver em completo isolamento da humanidade. São crianças que depois de pouco tempo de vida se perdem da população, vivem como animais, não falam e não andam como pessoas socializadas. Tais histórias se originaram de relatos relativamente comuns no século XVIII, que descreviam crianças encontradas no campo, tidas como sobreviventes por circunstâncias especiais, desde os primeiros anos de vida, criadas por animais, sem contato com humanos e assim se tornando selvagens.

quinta-feira, 24 de julho de 2025

Modulação da linguagem

Visa pincelar um dos problemas da comunicação humana

Há um problema de comunicação que se caracteriza pela forma (que superpõe um conteúdo, que lhe é superveniente) sobre a qual formulamos certas opiniões que são mal compreendidas por terceiros. Se, para nós, determinadas frases nos soam “naturais”, para os outros elas podem se fazer estranhas, quase que sem um sentido. Mas, para início de conversa, caracterizemos sentido.

Quando falamos de sentido, nessa nossa argumentação, queremos nos fiar na tese wittgensteiniana de que o sentido se dá pelo uso, mas, expliquemos. Por exemplo, qual é o sentido de banco? Poderíamos falar sobre um banco apontando para “o banco da praça ali de trás” e isso especificaria uma referência univocamente. Ou poderíamos falar deste banco por meio uma descrição atributiva e teríamos que ser um pouco mais explícitos sobre sua localização, cor, formato, entre outras características. Por outro lado, eu poderia falar sobre um banco dentro de um contexto de conversação, por exemplo, “Quando eu estava ali no banco sacando dinheiro, observei que começou a chover”. Nesse caso, o sentido se dá pela maneira como usamos a palavra banco e ele não depende de nosso interlocutor nem mesmo já ter estado na praça e conhecer todos os bancos que lá existem, mas depende da forma como eu me expresso e da forma como ele interpreta. E o par de ações expressar-interpretar é o busílis da questão.

Ocorre que, como postulou Wittgenstein: “Para uma grande classe de casos em que é utilizada – embora não para todos os casos – pode-se explicar a palavra ‘significado’ da seguinte maneira: O significado de uma palavra é seu uso na linguagem.” (p. 53, parágrafo 43, grifos do autor[i]). Como vínhamos expondo, vamos substituir sentido por significado e seguir a máxima wittgensteiniana de que o significado de uma palavra se dá pelo seu uso na linguagem, em boa parte dos casos.

Ponto dois, citando novamente: “os jogos de linguagem apresentam-se como objetos de comparação, os quais, por meio de semelhanças e dessemelhanças, devem lançar luz sobre as conexões de nossa linguagem.” (p. 106, parágrafo 130, grifos do autor). Os usos, de acordo com o autor, estão inseridos em jogos de linguagem, mas cada um se articula de determinada maneira: há o jogo de linguagem entre os colegas de trabalho e, ali, as palavras têm seus significados determinados naquele contexto de entendimento e há o jogo de linguagem familiar, diverso do primeiro, entre outros.

Dito isto, entendemos que habitamos uma pletora de jogos de linguagem com palavras, formulações e encadeamentos que se conjugam cada um a seu modo e eles tendem a se especializar sempre cada vez mais dentro de cada núcleo. Vejamos as conversas em família, como variam! A conversa da família A chega a parecer, em alguns casos, quase que outro idioma se comparado com a conversa da família B, já que com o desenvolvimento de cada jogo de linguagem sinais vão sendo usados para significar coisa que vão se consensuando entre seus usuários, mas se afastando de um uso geral. E é nesse ponto que surge a nossa questão, quando um usuário do jogo de linguagem da família A estreita relações e diálogos com um usuário da família B. Como cada usuário está familiarizado com seu jogo de linguagem, determinada ordem de sinais ou o uso de determinados sinais traz falhas de interpretação e elas podem beirar o incomunicável. Não que eles não possam mais conversar, mas algumas formulações devem ser moduladas ou reformuladas para que se chegue em um diálogo possível.

Até porque, o uso de determinadas palavras de determinados modos pode soar aviltante ou desrespeitoso no jogo de linguagem A sendo perfeitamente natural no jogo de linguagem B. Ocorre que, etiquetas a parte, não há regra geral, mas um aprendizado mútuo baseado em situações e suas consequências que nos levem a padrões, não de uso, mas de mal uso que suscitam erros de comunicação que levarão a necessidade do uso de uma infinidade de palavras, ordenamentos e formulações para correção e retorno ao ponto anterior ao problema, gerando desgaste e perda de tempo, e humor.



[i] WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução de Giovane Rodrigues e Tiago Tranjan. São Paulo: Fósforo, 2022. 

quarta-feira, 16 de julho de 2025

Andar de bicicleta

Quando a linguagem se aproxima do incomunicável[i]

Eu queria saber qual é a sensação de andar de bicicleta. Refletindo agora sobre essa atividade física, eu fico tentando me lembrar do que eu sinto quando ando de bicicleta: o vento no rosto, aventura, sensação de liberdade, mas em alguns casos de perigo e medo.

Então eu me pergunto se eu consigo comunicar essa sensação, mas parece que isso é impossível. Eu até posso falar sobre ela, mas eu não tenho certeza se é exatamente isso, ainda mais que faz tempo que não ando de bicicleta.

Pode ser que, se e quando eu andar, eu sinta algo totalmente diverso, quem sabe uma felicidade ou, durante a execução da atividade, ela me remeta a outra experiência ou sensação e talvez ISSO seja incomunicável.

Eventualmente uma foto da minha expressão durante a atividade ou um vídeo possam ajudar nesse desafio. Ou quem sabe o monitoramento do meu batimento cardíaco ou da atividade cerebral ajude a dar indícios do que se passa comigo, mas não exatamente o que se passa, apenas um arremedo.

Diante de tal cenário, sou levado a concluir que falar sobre o que é andar de bicicleta, de modo inequívoco, é quimera. Eu posso elencar uma coleção de informações e relatar, mas você só saberá o que efetivamente é andar de bicicleta ao andar de bicicleta e, provavelmente, a sua experiência e sensação seja diferente da minha. Assim, ficamos em um campo de aproximações.

Por outro lado, posso também comunicar como é andar de bicicleta, ou seja, as ações que você deveria tentar fazer para andar de bicicleta. Por exemplo, você teria que pedalar, segurar o guidão firme e reto, olhar pra frente e se equilibrar. Seguindo essas instruções e outras mais detalhadas você supostamente conseguirá andar de bicicleta, mas só saberá o que é andar de bicicleta andando de bicicleta.

Tudo isso só mostra que é tudo muito incerto, mas nada impossível. E isso tudo reforça o compromisso que devemos ter com uma comunicação que se permita compreensível e que engaje.



[i] É sobre Berkeley. De alguma forma inspirado em https://youtu.be/SgM0LJwT3-g, Aula 17: Berkeley: Consciência e o conhecimento da mente e do mundo externo de Vinícius França Freitas>

sábado, 5 de julho de 2025

Filosofia e sociedade

Panorama da sociedade capitalista[i]

Sabemos que as sociedades se desenvolveram historicamente até chegarmos aos nossos dias quando predomina o sistema capitalista que se perpetua no avanço tecnológico e divisão do trabalho. Ocorre que nas sociedades primitivas os seres humanos se associavam em busca de sobrevivência, porém na sociedade capitalista na qual há busca de riqueza, o valor primordial é do interesse individual e do enriquecimento privado.

Nesse cenário o bem coletivo deixa de ser perseguido e se transforma em uma luta pela apropriação de recursos ainda que concentrado na mão de poucos. Por outro lado, a globalização produz histórias semelhantes ao redor do mundo já que integra a vida social e econômica em um mercado mundial e correlaciona, por exemplo, o produtor de arroz brasileiro com o chinês, nessa balança produtiva.

Da mesma forma, o desenvolvimento global impacta o desenvolvimento local, o avanço tecnológico tal como o que ocorre na medicina pode atingir a todos, com a ressalva fundamental de que os com mais poder aquisitivo se beneficiam mais. Além do que todo o poder da produção global poderia resultar em mais tempo livre para o trabalhador, mas esse trabalha cada vez mais para aumentar o lucro individual da burguesia. Resulta que essa sociedade cindiu a conexão entre o indivíduo e a coletividade.

Grande parte do lucro é estimulado pelo consumo e, na sociedade capitalista, o consumismo vira um fim em si mesmo, para além das reais necessidades e estimulado pela propaganda que nos aguça a cada vez possuirmos mais coisas e coisas que logo vencem[ii] e precisam ser trocadas, gerando novas necessidades de consumo. Marca dessa sociedade consumista são os shopping centers e os supermercados, nesses últimos o consumidor tem o contato direto com a mercadoria e reduz custos de venda do capitalista.

O consumo desenfreado leva a produção de bens não duráveis competindo com produtos de primeira necessidade que não chegam para todos, há desperdício e hábitos de consumo pouco saudáveis que trazem grandes impactos ambientais que são sentidos em catástrofes que atingem os mais pobres.

Uma arma poderosa e essencial para a burguesia é o Estado que aparece como coisa pública separada da sociedade civil e central para a democracia, já que os governantes são eleitos pelo voto. Porém, ele é uma ilusão sendo usado para perpetuar as desigualdades. Se a ordem política visa igualar trabalhadores e operários, ela esconde a diferença de poderio econômico e chancela a desigualdade social. Com a ajuda da ideologia dominante, a democracia faz parecer que a sociedade é harmônica e igualitária, com garantia de direitos.

O Estado, então, assevera a ordem vigente e a exploração por meio de um aparato legal e jurídico de dominação. E, em casos extremos, sabemos que as democracias se transformam em ditadura a serviço da burguesia. É entendendo as limitações desse sistema político da sociedade contemporânea que podemos perceber que não há garantias de justiça social, que há uma crise de representatividade e que deveríamos pensar em novas formas de participação popular.

Isso posto, não é só da produção de objetos que as sociedades se desenvolvem, mas pela arte podem se expressar e se relacionar com o belo por meio da imaginação e criatividade. Entretanto, a produção artística não é isolada, ela está inserida na história e cultura, dentro de um contexto social. Ela também medeia entre o estado de natureza e o estado de produção intelectual manifestando ideias e sentimentos.

Mas também pode possuir vínculos ideológicos servindo a interesses e escondendo a verdadeira realidade, como quando a burguesia se apodera da cultura popular e determina o que pode ser ou não classificado como arte. Contudo é, sem dúvida, uma dimensão essencial do ser humano e o que possibilita a compreender melhor o mundo e a sociedade.



[i] Com base em: https://aprendamais.mec.gov.br/course/view.php?id=1945#section-4, “4 Filosofia e sociedade” – Plataforma Aprenda Mais.

[ii] Em https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2021/07/catalogo-de-autores-da-filosofia-da.html, Gunther Anders e Arnold Gehlen tratam da obsolescência. 

domingo, 29 de junho de 2025

Filosofia da Mente livre-arbítrio (Parte 2)

Problematizando o livre-arbítrio[i]

Nessa segunda aula, Vitor discute se existe livre-arbítrio e qual a sua natureza, considerando dois aspectos importantes, o constitutivo e o ético. Entende-se o livre-arbítrio como o mecanismo que um agente usa para controlar suas escolhas e ações, seja se ele poderia escolher de outra forma ou se é ele próprio a fonte de sua ação. Isto é, pode haver mais de uma alternativa de escolha, mas mesmo que seja apenas uma, é ele que escolhe.

O argumento da consequência, fundado no determinismo, versa que tudo o que acontece na realidade é oriundo de uma cadeia de acontecimentos e não temos poder para mudar o passado e as leis. Isto é, não temos controle sobre nossas ações. Isso posto, não há livre-arbítrio e, consequentemente, responsabilidade moral porque não podemos agir de outro modo ou de maneira autônoma.

Caracteriza-se o livre-arbítrio como a “liberdade de fazer diferente”, seja por uma capacidade física, psicológica ou com base em desejos. Nesse contexto, há uma vertente compatibilista que aceita o livre-arbítrio mesmo em um mundo determinado e há os que aceitam o livre-arbítrio desde que o mundo não seja determinado. 

Pela análise categórica, poderíamos agir de outra forma contanto que não houvesse nenhuma mudança nas “variáveis do mundo”. Aí ignora-se a causalidade da natureza, incompatibilizando livre-arbítrio e determinismo.

Pela análise condicional simples um agente faria o contrário se escolhesse fazer o contrário, mesmo em um mundo determinado causalmente. Entretanto, parece que a ação poderia ser diferente, mas não a escolha em si, porque ela seguiria o nexo natural. Parece que as escolhas estão predeterminadas e oriundas de fatores como cultura, sociedade e características biológicas, entre outras. Nesse caso, há uma ilusão de escolha, conforme comenta Vitor.

Então, reformula-se a análise condicional simples para que o controle ocorra efetivamente na escolha e não somente na ação, isto é, na capacidade escolher de outra forma, mesmo que não a desejada ou escolhida, mediante condições de terceiros, que é quando cedemos. Conclui Vitor que essa formulação de livre-arbítrio associada a desejo ou escolhas é falha porque não satisfeita somente pelo ator.

Então ele traz o exemplo de um agorafóbico que não escolhe nem ao menos ficar em casa porque não se trata de uma escolha, mas de uma imposição psicológica. Ele escolhe ficar em casa dentro dessa circunstância.

Então, estamos no campo do livre-arbítrio de escolhas entre alternativas, conforme ressalta Vitor e o que está envolvido nessa escolha, seja se “escolhemos a escolha” ou se ela decorre de outros fatores. O agente é livre se prefere uma escolha, não uma ação, mas acabamos cedendo a outras pessoas ou fatores 

Tentando salvar a análise condicional, a análise condicional pode se valer das propriedades do próprio agente que não são as leis deterministas da natureza, externas a nós. Ficamos entre uma incompatibilização do livre-arbítrio com o determinismo ou reformular o que significa ser livre. 

Adentramos no campo das teorias da fonte da ação, quando provém do próprio agente, sem coerção. Vitor então traz um experimento mental de um neurocirurgião que instala um chip no paciente que controla suas ações e é ativado quando ele for tomar uma decisão errada. Ocorre que ele toma uma decisão correta, por conta própria, sem que tenha sido necessário ativar o chip. Por um lado, ele fez uma ação positiva, independentemente das possibilidades alternativas e de não poder agir, negativamente, de outra forma. Então há responsabilidade moral porque ele foi a origem da ação.

O dilema Wiederkehr-Ginet procura problematizar este experimento, mostrando que, em um mundo determinado, mesmo que o paciente tenha sido a fonte da ação, não se comprova que foi independente de fatores externos. Já em um mundo indeterminado, se não houvesse o chip, há possibilidade de agir de forma diferente e agir por conta própria, nesse caso, é irrelevante.

Então Vitor traz o tema do libertarianismo que é incompatibilista, e tem versões não causal (espontânea, parece não haver responsabilidade moral porque aleatória e incontrolável), causal de eventos (por causas internas, mas difícil de explicar a independência das causas externas) e de agentes (o agente é a causa primeira, não um evento e aí fica a mercê das críticas dualistas, como explicar a natureza do agente e como se relaciona com o mundo físico).

Se o livre-arbítrio postula um “eu” que toma decisões, há dificuldades de explicar o que é esse tomador de decisão e como ele age, de um ponto de vista metafísico e no contexto de um mundo determinado e causal. 

Falando dos argumentos contra o livre-arbítrio, há um argumento a priori, de ordem lógica, já que a liberdade viola o princípio de razão suficiente e que livre-arbítrio sempre recorre a uma causa outra daquela ação livre, tendendo a uma sequência infinita para a razão daquela ação.

Há o argumento da sorte, também a priori e contra o libertário, que procura enfatizar que se não há causa somos guiados pela sorte e, portanto, sem liberdade. Entretanto, podemos pensar no controle metafísico, que procura pelo sujeito como causa real, e no controle epistêmico, que procura entender por que uma decisão foi tomada. Podemos ter uma escolha que, mesmo indeterminada, pode ser explicada e compreensível. Vitor comenta que, trazendo a explicação para dentro do contexto, é um livre-arbítrio possível e não que busque por todas as causas.

No campo empírico, a posteriori, pesquisas indicam que o comportamento humano é estatístico, seguindo tendências e não regras determinísticas. A liberdade seria o caso de quebrar um padrão estatístico ou ainda dentro dos padrões já que as pesquisas retratam o que as pessoas querem, de acordo com Vitor. 

Então Vitor traz o experimento de Libet[ii] que mostra que há uma atividade cerebral precedente à decisão consciente indicando uma liberdade ilusória e a consciência como que justificando a escolha. Mele[iii] entende que esse potencial de prontidão não passa de uma preparação fisiológica e dentro do processo contínuo decisório. Além disso, o experimento trata de movimentos simples e não de um processo complexo de decisão. Também é mencionada a abordagem de Sapolsky em defesa do determinismo e de que o livre-arbítrio é uma sensação subjetiva, apenas, um reflexo condicionado de experiências passadas que ele aborda com exemplos práticos[iv].

 Por fim, argumentos favoráveis ao livre-arbítrio. Primeiro que, por hipótese, seres racionais são livres para tomarem suas decisões, ainda que isso seja um postulado ao modo kantiano. De outra forma não teríamos responsabilidade moral e etc. O’Connor entende que mesmo esse agir racional ainda pode ser determinado. Há ainda a experiência interna da liberdade que não precisa de explicação metafisica, mas é intuitiva, ao modo agostiniano. Por fim, do ponto de vista teórico, o livre-arbítrio pode ser considerado uma crença básica, como um fundamento da realidade. Os materialistas eliminativistas tentam explicar a realidade sem crenças, mas ainda não obtiveram sucesso.

[iv] Vitor discorda por se tratar de estatísticas e, nesse sentido, mostra que não se aplica a todos os casos. 

sábado, 28 de junho de 2025

Introdução ao tratado sobre os princípios do conhecimento humano

Notas sobre a introdução do tratado de Berkeley. Aqui vemos que o bispo tem uma ideia fixa contra a ideia abstrata[i]

1. A filosofia busca a verdade para evitar que os erros dos sentidos nos levem ao ceticismo.

2. Há imperfeição em nosso conhecer.

3. O problema pode ser o mau uso das nossas faculdades.

4. Inquirir princípios do conhecimento humano.

5. Difícil tarefa.

6. Problema com abuso da linguagem, noção de ideia abstrata, objeto da Lógica e Metafísica.

7. Tomar ideias por abstração (extensão, cor, movimento).

8. Ideia de algo em abstrato (ideia abstrata de movimento).

9. Não é fácil conceber ideias de coisas sem propriedades particulares.

10. Dois sentidos de abstração: considerar partes que podem existir separadas e não conceber qualidades que é impossível encontrar separadas.

11. Locke: o que distingue homens de animais é nossa capacidade de formar ideias gerais porque usamos palavras, pela linguagem. Palavras que são gerais por significarem ideias gerais, mas o sinal não é de uma ideia geral abstrata, mas de muitas ideias particulares.

12. Generalidade de uma ideia particular; tornar geral: não que exista ideia geral abstrata.

13. Locke: dificuldade em formar ideia abstrata. Berkeley: examinar se as encontramos em nosso próprio pensamento.

14. Ideias abstratas são desnecessárias a comunicação, que é simples.

15. Mesmo a universalidade: na demonstração, usam-se particulares.

16. Para demonstrar não preciso da ideia abstrata, mas generalizar.

17. Os escolásticos, grandes mestres da abstração, nos legaram disputas e controvérsias. “Mas talvez isso possa findar pela revisão de falsos princípios adotados no mundo; e entre eles nenhum talvez exerceu (sic) maior império no pensamento especulativo do que o das ideias gerais abstratas.” (p. 15).

18. A linguagem é a fonte dessa noção privilegiada onde um nome geral é significado por uma ideia abstrata de uma coisa particular. Mas confunde-se a improvável representação com a sugerida definição.

19. Supõe-se que a linguagem só tem por fim comunicar ideias, isto é, palavras significativamente e o que envolve noções abstratas.

20. Há outros fins para a linguagem que usam nomes gerais sem formar ideias (emoções, paixões, promessas). Ocorre que nem mesmo nomes próprios chamam a atenção para os indivíduos desejados ("Aristóteles disse isso").

21. Dada a impossibilidade das ideias abstratas devemos usar as palavras para empregar ideias puras e simples.

22. Vantagens: 1.) evitar controvérsias, 2.) evitar ideias abstratas e 3.) limitar pensamento a ideias despidas de palavras para não nos enganarmos.

23. Citação: “obter essa vantagem pressupõe libertação completa da falácia de palavras” (p. 17), embora seja difícil quebrar união entre palavras e ideias.

24. Se só temos ideias particulares é em vão buscarmos ideias abstratas associadas a um nome, os nomes nem sempre significam ideias.

25. Libertar os primeiros princípios do conhecimento da confusão das palavras.



[i] BERKELEY, George. Tratado sobre os princípios do conhecimento humano. Trad. Antonio Sérgio. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção Os Pensadores). O tema foi muito bem explorado por Hacking e resumimos nesse texto: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2024/01/as-abstracoes-do-bispo-berkeley.html. 

O documento aborda a introdução do tratado de George Berkeley sobre os princípios do conhecimento humano. Berkeley critica a ideia de abstração, argumentando que é difícil conceber ideias de coisas sem propriedades particulares. Ele discute a imperfeição do nosso conhecimento e o mau uso das nossas faculdades. Berkeley também examina a noção de ideias abstratas e como elas são desnecessárias para a comunicação. Ele sugere que a linguagem é a fonte dessa noção privilegiada e que devemos usar palavras para empregar ideias puras e simples, evitando controvérsias e limitações do pensamento.

domingo, 22 de junho de 2025

Origem capitalista

Esta reflexão passa por temas básicos do sistema capitalista[i]

Falemos brevemente da teoria da mais valia que procura mostrar que o lucro do patrão vem do trabalho do empregado e não de outro meio. Isso ocorre porque a única forma de produzir um novo valor é por meio do trabalho. No sistema capitalista o patrão é dono dos meios de produção: das máquinas, ferramentas e instalações e esse é um tipo de despesa que ele tem. Porém, máquinas, energia elétrica e matérias primas não se transformam em produtos “ex abrupto”, elas precisam da força de trabalho, constituindo-se essa uma segunda despesa do patrão. Ocorre que a base do sistema capitalista é o lucro, isto é, a acumulação de capital e ele não pode se originar de uma despesa que seja artificialmente elevada porque dessa forma ela seria repassada a outro capitalista, que compra o produto e que, depois, também precisaria gerar um novo lucro pela subida artificial de preços e assim sucessivamente. Ora, nesse processo, não se gera valor. O valor é gerado quando o patrão paga ao trabalhador menos do que ele poderia receber e abocanha esse valor que se caracteriza como lucro, que se serve para que ele possa investir na expansão de seu negócio ou especular.

É o valor do trabalho, a mais-valia que não é originada como se poderia pensar da compra e venda de mercadorias acima de seu valor e nem do simples investimento em meios de produção. A mais-valia é o valor excedente gerado pelo trabalho de um operário que não é a ele pago na forma de salário, isto é, ele vende sua força de trabalho por um valor inferior ao que ela vale. Há um capital constante, o das primeiras despesas, que sempre é repassado, mas há o capital variável, do trabalho humano que, este sim, cria valor. E o trabalhador não recebe pelo valor que ele cria, mas pelo valor necessário para reproduzir sua força de trabalho.

Acontece que essa não é uma situação “natural”, muito ao contrário, ela antagoniza patrões e empregados, já que cada qual tem um objetivo diferente. Mas ela se oculta na ideologia dominante, ou seja, na circulação de ideias que visam esconder que, por exemplo, uma pessoa é pobre não porque é explorada, mas porque é preguiçosa e não gosta de trabalhar, assim naturalizando-se a desigualdade e desencorajando a luta por melhores condições. A ideologia surge como norma que institui o ordenamento vigente como natural e faz com que se imponham os valores da classe dominante. O ordenamento vigente, como o capitalista, surge então como uma realidade que deve ser seguida e obedecida, quando na verdade é um constructo histórico e social.

Como não poderia deixar de ser diferente, a mídia é grande propagador da ideologia dominante, já que forjada no berço dos grandes capitalistas e utiliza a propaganda ideológica para mostrar uma realidade que se apresenta neutra, mas que é na maioria das vezes é tirada de seu contexto ou vista sob certos ângulos. Nesse sentido é uma arma filosófica questionar essas supostas “verdades” que visam encobrir a crítica.

Ponto fundamental é a alienação que ocorre porque o resultado do trabalho não fica de posse do trabalhador, mas é transferido ao patrão. O trabalhador mal tem condições de determinar o valor de salário, seu horário de trabalho e condições. Ele se integra e uma linha de produção como mais uma peça e mais se aliena porque não consegue enxergar o todo do processo e cumpre as tarefas pelas quais é delegado. Se é pelo trabalho que o homem passa a se desenvolver e transformar a natureza pelo seu pensar e agir, no capitalismo o trabalho se torna um instrumento de subserviência e exploração, se torna uma mercadoria.

Não podemos nos esquecer de que a ideologia também se perpetua na moral que rege a ordem vigente capitalista que condiciona valores e normas criando leis favorecem o interesse burguês na medida em que passa a falsa ideia de que todos são iguais quando na verdade e ela que acentua desigualdades. É uma moral hipócrita que serve ao individualismo burguês.

Mas é tomando pé dessa situação que podemos refletir e procurar agir dentro da liberdade que nos é possível dadas as condições sociais e históricas numa luta contra a dominação e alienação. Importante frisar que, se parece que o mundo é determinado, como é dito pela ciência, a consciência do homem é uma causa que permite mudar a essa determinação, é fonte de escolha. Entretanto, não é uma liberdade individual, ao contrário, ela visa a emancipação humana se desgarrando das condições econômicas que impinge perda de liberdade. Uma ação que vise o interesse coletivo e que promova melhorias efetivas no sistema de desequilíbrio.



[i] Com base no capítulo 3 (https://aprendamais.mec.gov.br/course/view.php?id=1945) de “Filosofia I - Turma 2025A” – Plataforma Aprender Mais, acessado em 19 de junho de 2025. Também com ajuda de pesquisas aleatórias na internet.

sábado, 10 de maio de 2025

Um pouco de estória

Versa que só há ficção entre a realidade e nós[i]

Vejamos que interessante a seguinte divisão.

Realidade objetiva. Essa é, “de fato”, a realidade do mundo, das coisas, como, por exemplo, pedras, árvores e astros. É uma realidade difícil de negar porque se apresenta a nossos olhos e seria por ela que a ciência deveria se guiar, na medida em que se funda em observações empíricas. Ocorre que nessa realidade há animais que possuem realidade subjetiva.

Realidade subjetiva. Essa é a realidade mais inatingível e duvidosa porque é uma realidade privada, fora do alcance de um terceiro. Um sentimento ou uma dor, por mais que possa ser expresso ou dito, não pode ser comprovado de maneira cabal, embora possa haver maneiras de medi-los, como um esfigmomanômetro ou tomógrafo. A realidade subjetiva é composta também de pensamentos e, acrescenta-se a isso, que parece haver uma mente ou uma consciência que cria uma subjetividade que permite a seu hospedeiro criar suas narrativas. Contudo, para fugir do solipsismo, em algum momento essa narrativa precisa ser contada para alguém que possa compartilhar dela e é aí que surge a terceira realidade.

Realidade intersubjetiva. É essa realidade que permite o constructo imaginário, até então de posse somente humana, e que funda a forma como pensamos e agimos. É nessa realidade que habitam as leis, os estados e toda e qualquer criação humana. Ora, se parece que a verdade reside na realidade objetiva é mediante uma realidade intersubjetiva aceita pelas realidades subjetivas que se vive e morre, seja ou não por causas naturais, e tudo isso é muito envolto em ficção.

Diagrama, Diagrama de Venn

três realidades sobrepostas difícies de enxergar, tanto separadas quanto seus limites

De posse disso, podemos concluir que, ainda que exista uma verdade sobre a realidade objetiva, jamais teremos acesso a ela porque ela é multifacetada, complexa e com várias camadas sobrepostas. Todas essas características são expressas de maneira intersubjetiva por um ponto de vista subjetivo que é limitado e por si só incapaz de descrevê-la integralmente por que ele mesmo está nela, por mais que a intersubjetividade possa ter um ideal de aperfeiçoamento coletivo. E seria uma petição de princípio uma descrição externa de um ponto de vista interno.

Nós, humanos, somos parte da realidade objetiva e não conseguimos nem mesmo nos compreendermos em nossa totalidade. Também não conseguimos compreender a totalidade do outro e de toda a realidade porque estamos inseridos nela. Além disso, nossas compreensões podem ser formuladas por uma linguagem, ela mesma parte da realidade intersubjetiva. E é pela linguagem que toda a realidade intersubjetividade é criada e mantida, por meio de estórias que, bem contadas, criam ficções irresistíveis, convincentes e que arrastam e arrasam multidões.



[i] Um breve texto a partir dos capítulos 1, 2 II de HARARI, Yuval Noah. Nexus: Uma breve história das redes de informação, da Idade da Pedra à inteligência Artificial. Tradução de Berilo Vargas e Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2024.