quarta-feira, 30 de abril de 2025

Superparticulares

Investiga se as formas platônicas podem ser consideradas universais ou particulares

Teoria das formas ou ideias. Sabemos que a teoria das formas, proposta por Platão, é uma das possibilidades de resolver o problema de Parmênides[i]. Há o mundo das formas onde habitam Beleza, Justiça, Igualdade, entre outras e há o mundo sensível, acessível a nós, onde as coisas são cópias das formas (ou ideias). Platão, no diálogo Parmênides, caracteriza a relação entre elas de “participação”, isto é, uma coisa bela participa da Beleza, mas não é o Belo[ii]. Porém, esse tipo de teoria levanta muitas questões que são abordadas por ele nesse diálogo, principalmente de ordem lógica. Algumas delas nós verificamos na dissertação da nota anterior, e uma pergunta: as formas platônicas poderiam ser consideradas universais ou particulares? Nesse ínterim, apontamos para um possível nominalismo em Platão, que pode assim ser caracterizado dadas as dificuldades que ele tem de lidar com as objeções[iii].

Definições. Lembremos que um particular é algo que nos é dado pela sensação enquanto um universal é compartilhado por muitos particulares, como uma qualidade daquele particular, por exemplo, ser belo. Se assumimos que essas qualidades são coisas elas mesmas particulares, temos uma posição nominalista, mas, por outro lado, considerando algumas dessas qualidades não como particulares, mas como universais, estamos em uma posição realista.

Crítica dos contrários. Uma das primeiras críticas apresentadas por Zenão, versa a respeito da pluralidade das coisas, resguardando o princípio parmenidiano de que “o ser é, e o não ser não é”. Ora, se uma coisa é justa, ela é semelhante à Justiça, mas dessemelhante à Injustiça, parecendo aí haver uma contradição lógica, isto é, a coisa participa do Semelhante e do Dessemelhante. Ou, é justa em um momento e injusta em outra, não se mantendo uma suposta semelhança.

Distinguindo semelhanças. Mas, não é o que acontece, conforme salienta Platão, porque temos de considerar coisas que são simplesmente semelhantes de coisas que são semelhantes, mas não simplesmente semelhantes. Há objetos que compartilham semelhanças em certas características, mas possuem diferenças em outras, ou seja, o segundo caso. A participação de uma coisa em uma Forma implica uma semelhança deficiente com essa Forma, enquanto a Forma perfeitamente se assemelha a si mesma.

Unidade da forma. As coisas "participam" de uma Forma de maneira imperfeita, enquanto a Forma em si possui uma qualidade de forma absoluta e as Formas em si não podem ser uma pluralidade; a Forma da Unidade é simplesmente Uma. Citemos: “Mas se alguém puder provar que o que é simplesmente a Unidade em si é muitos ou que a Pluralidade em si é uma, então começarei a ficar surpreso.” Para evitar a conclusão de Parmênides, Platão insiste que as Formas permanecem puras e sem contradições, enquanto os objetos do mundo sensível podem exibir semelhanças e diferenças simultaneamente.

Indivisibilidade das Formas. Segunda crítica. Ocorre que, quando uma forma participa de muitas coisas, ela parece se dividir e, para respeitar o princípio da "Discernibilidade de Não-Idênticos", ela deveria diferir de si, o que contradiz a ideia de que as Formas possuem um caráter único e indivisível. Mas, como só possuem uma característica, não deveriam ser discerníveis.

Metáfora da Vela. O argumento parmenidiano da metáfora da vela (ou lona) traz dificuldades. Podemos pensar que a vela grande cobre várias pessoas, mas aí ela estaria em vários ao mesmo tempo, ferindo o princípio da unidade. Podemos pensar, por outro lado, que cada pessoa é coberta por um pedaço da vela, mas isso fere o princípio da indivisibilidade. Ainda há a possibilidade de que cada pessoa fosse coberta por um pedaço diferente da vela, mas, nesse caso, como comparar cada pedaço da vela presente em cada pessoa?

Separação das formas. Brownstein argumenta que a necessidade de Platão responder aos argumentos de Parmênides o leva a uma posição nominalista. Para evitar que as Formas sejam divisíveis (o que violaria os princípios de Parmênides), Platão precisa separá-las do mundo sensível. Essa separação, no entanto, dificulta a explicação de como as coisas participam das Formas.

Particularização das formas. Brownstein sugere que Platão, ao priorizar a unidade das Formas, acaba sacrificando sua imanência nos objetos comuns. Isso implica que a Forma (círculo, por exemplo) não é necessariamente universal, e a distinção entre universal e particular se torna menos clara. Em vez de uma qualidade universal compartilhada, a participação em uma Forma se assemelha a uma atribuição de nome ou marca. Isso coloca a Forma em um nível superior, dotada de qualidades superparticulares, em vez de ser uma característica universal compartilhada pelos objetos.



[ii] Monstramos a relação de participação no segundo capítulo da dissertação https://drive.google.com/file/d/16_oIdJMEAtmrv-aATZiUSMe_7HsD-QvF/view?usp=drive_link - UNIVERSALS IN THE “THEORY OF FORMS” OR “THEORY OF IDEAS”, disciplina LÓGICA I, 1o Semestre de 2013 (FLF0258 - Rodrigo Bacellar). Não consideraremos agora a perspectiva de Russell que, utilizando um contexto linguístico, argumenta que as relações entre as coisas na linguagem podem levar a uma interpretação universalista da teoria das formas.

[iii] Assim pensa Brownstein que usamos como fonte: Donald Brownstein, Aspects of the Problem of Universals. Lawrence: University of Kansas Publications, Humanities Studies, 44, 1973, principalmente Capítulo IV: Platonismo e a Rejeição do Universal.

segunda-feira, 28 de abril de 2025

Qual é o lugar da IA na história?

Defende que a AI é uma tecnologia revolucionária, mas não é uma revolução tecnológica[i]

Basicamente, Carlota Perez pontua que, apesar de seu caráter revolucionário, a IA faz parte da revolução tecnológica em andamento e iniciada há 50 anos[ii]. Obviamente, a IA é fator chave, mas a revolução da tecnologia da informação e comunicação (TIC) começou com os microprocessadores[iii] em 1970 e se aprofundou com a internet, nos anos 90, estimulada pelo governo dos EUA.

Ponto chave que ela destaca é a capacidade que a TIC deve ter de gerar progresso social e ambiental, como aferido em outras revoluções. Ela cita seu livro Technological Revolutions and Financial Capital[iv], onde argumenta que períodos iniciais revolucionários são permeados por crises criativas destruidoras em todas as áreas econômicas, demandadas pelos mercados, e que possibilitam surgir novas tecnologias que eliminam empregos e demandas novas habilidades. Porém, passado o efeito inicial, as regulações devem surgir para orientar os ganhos sociais, mas é a forma dessas inovações que determina as decisões econômicas dos atores envolvidos (investidores, empresas, governos e famílias).

De acordo com Perez, o advento da computação tenta transformar a noção de mudança tecnológica como capaz de revolucionar, dado seu caráter inovador, seja a tecnologia verde ou criptomoedas. Mas, se há estágios de inovação, como os citados processadores e a globalização, ela afirma que “uma tecnologia revolucionária não é a mesma coisa que uma revolução tecnológica”[v], isto é, a inteligência artificial está dentro da revolução tecnológica vigente. Se a IA, assim como a internet das coisas IoT e a robótica, pode constituir um terceiro salto inovador, ainda depende dos anteriores (da internet, que depende dos chips). E ainda muito no campo da mecanização do trabalho mental, sem tantas mudanças na forma de trabalho manual que podem vir a ocorrer nesse paradigma de transformação digital.Parte superior do formulário

Paralelo histórico. Notadamente, para Perez, o ponto crucial é a mudança inovadora da base técnica, de materiais e infraestrutura, introduzindo novos insumos e fontes de energia, alavancando transporte e comunicação e reduzindo custos. Isso teria ocorrido em revoluções anteriores e capazes de transformar economias e sociedades, conforme ela cita: a Revolução Industrial (1770); a era do vapor e ferrovias (1830); a era do aço, eletricidade e engenharia pesada (1870); a era do petróleo, automóvel e produção em massa (1910); e a atual era das TIC, a partir da década de 1970. Mas não é o caso da inteligência artificial e ela usa alguns exemplos de comparação para mostrar que uma revolução tecnológica não se limita a tecnologia.

O que é uma revolução? Perez explica que uma revolução tecnológica traz mudanças governamentais e na sociedade, como a ascensão do populismo que acontece pela destruição criativa que comentamos, isto é, pela substituição de tecnologias. Ela ilustra o ponto de que uma inovação não é capaz de provocar o efeito do fascismo e comunismo que floresceram a partir da era da revolução das massas (linha de montagem, 1913 – Henry Ford) atingindo seu ápice no pós-guerra.

Há inovação dentro da revolução e Perez compara a IA com o plástico, introduzido na revolução que acabamos de comentar. Produtos petroquímicos, como poliestireno, náilon e borracha sintética impulsionaram usos industriais infinitos, assim como é o caso da IA penetrando em todos os setores, deslocando habilidades, mas não sendo em si a revolução, mas uma tecnológica revolucionária.  

Assim como o surgimento da eletricidade na era da engenharia pesada, capaz de deslocar a dependência do carvão e vapor ao conectar as máquinas diretamente na rede com grande impacto na produção. A iluminação fez parte da Belle Époque, nos teatros, hotéis e ruas da cidade, até chegar na casa de todas as pessoas, substituindo velas e lampiões a querosene. Entretanto, conforme Perez, “certamente parecia uma revolução”, mas dependia do aço e estava inserida nessa revolução, como as indústrias químicas e civil, por exemplo. Ou o caso da substituição do ferro pelo aço, que ela também aborda.

Uma revolução numa encruzilhada. Por fim, Perez pontua os problemas da revolução tecnológica atual e aponta diretrizes.

Continuando a análise, cada revolução tecnológica possibilita o surgimento de tecnologias revolucionárias, como a IA, hoje em dia, mas que se integram em um processo maior ou são precursoras de novos, como foi o caso da eletricidade e o aço, como foi o caso do computador, na TIC, até se tornar um aparato comum. Mas ela enfatiza que esse destaque da IA como revolucionária se dá pelo que já pudemos ver das tecnologias inovadoras que a TIC trouxe e que tornou alguns bilionários e certamente pode ser a base para uma eventual sexta revolução, possibilitando bio e nanotecnologias.

Contudo é fundamental gerenciar o processo de maturidade da TIC, já que podemos ver tecnologias se espraiando em direções imprevistas, trazendo resultados disfuncionais e mudanças climáticas irrefreáveis. Isso passa, segundo ela, por investimentos governamentais em tecnologias verdes, mas fundamentalmente uma fuga do capitalismo rentista que permita conectar o sistema financeiro às economias reais, ao invés de operar como um cassino global.

Ora, temos as tecnologias, mas nos falta a política, haja visto as incongruências que vemos hoje: má distribuição de renda, desastres climáticos, inovações desperdiçadas e crises migratórias. Se sombrio, o cenário ainda não é o da década de 1930 que moldou grandes transformações. Mas são as instituições que precisam guiar a TIC para um caminho de crescimento global sustentável, verde, digital e justo. E que inovações, como a IA, caminhem com investimentos corretos para a economia, sociedade e meio ambiente.

Finalizando, Perez ressalta que há um papel preponderante para a IA e inovações adjacentes, como robótica, computação quântica e genética, na construção de nosso futuro, mas isso passa pela conexão dos mercados com a economia real e desenvolvimento sustentável.

 

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[ii] Carlota Perez é professora do Instituto de Inovação e Propósito Público da University College London. https://carlotaperez.org/. Quem nos alertou sobre ela foi o professor Caetano C.R. Penna em https://youtu.be/F7-6f7r01SM, O plano de IA do Brasil – canal Paulo Gala/ Economia & Finanças.

[iii] Referência do texto: Microprocessors: the engines of the digital age - https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC5378251/.

[v] A revolutionary technology is not the same thing as a technological revolution.

sexta-feira, 25 de abril de 2025

IA pela ótica filosófica

Uma introdução à inteligência artificial pelo enfoque da filosofia da mente[i]

Sobre a história, peguemos algumas datas: em 1956, a conferência de Dartmouth decreta o nascimento oficial da IA; em 1980 tem-se o auge dos sistemas especialistas que, em 1990 dão lugar a sistemas que aprendem com os dados e não são baseados em regras, como Deep Blue, campeão de xadrez. Por fim, em 2010, há a consolidação da IA baseada em Big Data, poder computacional e algoritmos aprimorados pela Deep Learning, até chegar na atual IA Generativa.

Caracterizando a IA, a partir de Russell e Norvig, ela teria como objetivos imitar o desempenho humano e buscar a racionalidade ideal, tendo por foco construir sistemas que agem e raciocinam. Então, há sistemas que agem como humanos, como o Teste de Turing, sistemas que pensam como humanos (série Westworld[ii]), sistemas que agem racionalmente, por exemplo, recomendando filmes e, por fim, aqueles que pensam racionalmente, no caso de diagnósticos de doenças.

Fundamentalmente, para eles, a IA se debruça sobre agentes inteligentes que percebem [por sensores] e agem [por atuadores]. Eles podem ser de reflexo simples, sem memória e com regras tipo “se, então”, como um robô aspirador de pó (sensores mapeiam o ambiente e atuadores agem em resposta). Um pouco mais elevados, agentes reflexos podem ter um modelo interno, como um carro autônomo, que usa o modelo para tomar decisões. Há agentes de aprendizagem que moldam o seu comportamento de acordo com a experiência, como, por exemplo, um sistema de recomendação de vídeos. Por fim, agentes comunicativos podem utilizar linguagem natural para conversar, como a Alexa[iii].

Também se pode abordar a IA levando em conta a lógica, isto é, sistemas especialistas que usam regras bem definidas para extraírem inferências lógicas, como um diagnóstico médico, mas que não lidam bem com ambiguidade ou variabilidade. Já uma IA não logística foca em aprender com os dados para tomar decisões, como é o caso das redes neurais, inspiradas no cérebro humano, utilizadas nas mais diversas áreas, como para realizar reconhecimento facial. Em seu resumo, Vitor também se refere ao uso de probabilidade ao invés de regras fixas, indicando tendências com bases nas informações atuais.

Encerrando a introdução, ele elenca algumas linhas de pesquisa, como as já conhecidas IA forte[iv], que atribui estados mentais às máquinas, como experiência subjetiva e consciência e a IA fraca, flexibilizando os sistemas para que ajam como se fossem inteligentes, se comportando de modo indistinguível ao nosso.

Vitor também elenca alguns autores[v], entre eles, Searle, trazendo o argumento do quarto chinês, onde o interlocutor não sabe chinês, apenas usa um manual e manipula símbolos, sem os compreender. A crítica fenomenológica de Dreyfus, pontuando que a inteligência humana não se baseia em manipular símbolos, mas na experiência corporal e imersão no mundo. Nicolelis entende que a IA não é nem inteligente e nem artificial, questionando a analogia entre mente e máquina, contrapondo inteligência orgânica e supostos sistemas inteligentes. Para ele, a mente opera de modo analógico[vi]. E a IA também não é artificial por depender muito dos humanos que a criam e mantém.

Dois autores que Vitor traz que pouco exploramos. Crawford, que enfatiza que a IA se ancora no mundo físico e relações sociais, depende do meio ambiente e trabalho humano mal remunerado. Para ela, a IA só identifica padrões, mas não entende o mundo e pode ser vista como um sistema de poder com impactos éticos e políticos. Em linha semelhante, Harari alerta para o risco da IA dizendo que ela não precisa ter consciência para ameaçar a humanidade. A IA pode explorar nossas fraquezas e altera a base simbólica da cultura. Somos mediados pela linguagem e é por ela que a IA pode criar uma realidade paralela, colocando a democracia em risco, dada a sua capacidade de se aprimorar.

São pontos interessantes para voltarmos ao tema, algumas coisas já vimos, outras são novidades que podemos explorar e aprofundar.



[i] Resumo das aulas introdutórias de Vitor Lima (https://www.youtube.com/watch?v=zHjo3whbSgs), que toma como referências SEP (https://plato.stanford.edu/entries/artificial-intelligence/); Kate Crawford: Atlas of Al; Dreyfus: What computers can't do e What computers still can't do; Harari com Nexus; Nicolelis e O verdadeiro criador de tudo. Depois Norvig e Russell: AIMA e Searle: Behavioral and Brain Sciences.

[ii] Westworld é um parque de diversões futurista que permite a seus visitantes viverem suas fantasias utilizando uma consciência artificial. Independentemente de quão ilícita a fantasia possa ser, não há consequências para os visitantes do parque. (resumo Google Search)

[iii] Falamos um pouco de PLN https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2022/01/introducao-ao-processamento-de.html, mas não seguimos adiante.

[v] Os 3 primeiros já tratamos em algumas oportunidades aqui no nosso espaço.

[vi] Cérebro não binário: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2020/12/informacao-godeliana-anti-ia.html. 

segunda-feira, 7 de abril de 2025

Consciência

Visa aprofundar esse complexo conceito[i]

Sabemos que a filosofia da mente se debruça sobre a investigação de se ou como uma mente interage com um corpo e como processos mentais podem emergir do mundo físico. Nesse contexto, diferentemente de outros processos cognitivos como memória e linguagem, a questão da consciência é saber como surge um estado subjetivo a partir de um estado objetivo do cérebro. É o problema difícil cunhado por David Chalmers, tantas vezes já citado nesse espaço (desde 2016).

Preâmbulo[ii]. O artigo da SEP faz uma breve recapitulação da evolução do pensamento sobre a consciência ao longo do tempo, do qual pincelamos alguns pontos que achamos mais relevantes. Parece que a consciência, como a conhecemos hoje, é um desenvolvimento histórico relativamente recente, já que não havia uma palavra no grego antigo correspondente a “consciência”. Foi no início da era moderna que a consciência se tornou central no pensamento sobre a mente, considerada essencial ou definitiva do mental. René Descartes definiu a própria noção de pensamento em termos de consciência reflexiva ou autoconsciência. John Locke ofereceu uma afirmação semelhante, dizendo que não se pode pensar em nenhum momento, acordado ou dormindo, sem estar sensível a isso, sendo essa sensibilidade necessária aos pensamentos.

Leibniz propôs uma teoria da mente que permitia infinitos graus de consciência, aventando para a possibilidade de pensamentos inconscientes. Na Monadologia, ele usou a analogia do moinho para expressar sua crença de que a consciência não poderia surgir da mera matéria. Mas Locke e Hume, ficaram no campo da psicologia associacionista, que buscava descobrir os princípios pelos quais pensamentos ou ideias conscientes interagiam. Foi Kant quem argumentou que uma explicação adequada da experiência e da consciência fenomênica exigia uma estrutura muito mais rica de organização mental e intencional. Para Kant, a consciência fenomênica não poderia ser uma mera sucessão de ideias associadas, mas no mínimo teria que ser a experiência de um eu consciente situado em um mundo objetivo estruturado em relação a espaço, tempo e causalidade.

Entretanto, se no mundo anglo-americano as abordagens associacionistas continuaram influentes na filosofia e na psicologia até o século XX, na Europa houve maior interesse na estrutura mais ampla da experiência, como a fenomenologia abordada por Husserl, Heidegger e Merleau-Ponty que expandiu o estudo da consciência para o reino do social, do corporal e do interpessoal. Por outro lado, a psicologia científica moderna equiparava a mente à consciência utilizando métodos introspectivos, com Wundt e James, por exemplo. Apesar disso, a relação da consciência com o cérebro permanecia um mistério.

Já no início do século XX, essa psicologia científica da consciência perde espaço para o behaviorismo, mas que depois se enfraquece com a ascensão da psicologia cognitiva e sua ênfase no processamento de informações e na modelagem de processos mentais internos, muito embora a consciência permanecesse um tópico amplamente negligenciado por várias décadas. Já no final do século passado houve um grande ressurgimento da pesquisa científica e filosófica sobre a natureza e a base da consciência com uma rápida proliferação de pesquisas, com uma avalanche de livros e artigos, bem como a introdução de periódicos especializados, sociedades profissionais e conferências anuais dedicadas exclusivamente à sua investigação.

Consciência da criatura. Dada uma consciência, então, podemos tanto falar de um estado consciente quanto da consciência de uma criatura e, nesse caso, há diversos sentidos para dizer que uma criatura é consciente. Há um conceito mais “simples” que é o da senciência, relacionado ao sentir, isto é, quando uma criatura se relaciona com o mundo através de um sentimento. Assim, os peixes, que são sencientes, são conscientes? Nessa linha, há o critério da vigília que se refere a organismos que estão alertas e que não estariam conscientes quando dormindo.

Já a autoconsciência é a capacidade de termos consciência que somos conscientes. Nesse caso já estamos mais no campo conceitual, e que pode eliminar animais e crianças. Destarte, não basta somente responder aos estímulos do ambiente, mas ter a consciência desse tipo de resposta. Existe a questão de saber o que é ser um tal indivíduo, no sentido mais subjetivo, como proposto por Thomas Nagel na célebre discussão sobre “como é ser um morcego”, como modo próprio de ver o mundo (assunto já visto aqui em 2018). De fato, não sabemos o que é ser um morcego porque é uma experiência subjetiva dele e, assim, se uma criatura experiencia o mundo de modo particular então ela tem uma consciência.

Também podemos nos referir aos estados que experimentamos quando estamos conscientes. Aí, se uma criatura sente ou percebe, então ela é consciente. Há uma consciência intransitiva, que é estar consciente sem se referir a nada, sem se ocupar com nada. Já a consciência transitiva é uma consciência que tem um alvo: tem um critério intencional. Por fim, não podemos nos esquecer, aponta Vitor, que dá para produzir pensamentos, conceitos, sem uma consciência, conforme a perspectiva eliminativista[iii], embora quanto a isso, de novo, não haja consenso.

Estados conscientes. Falemos agora, não da consciência da criatura, mas dos estados conscientes. Um estado mental consciente é um meta-estado, qual seja, o fato de se saber que está consciente, um estado mental sobre um estado mental. Os estados qualitativos também podem ser conscientes, como os qualias, as nossas experiências subjetivas privadas. Já estados fenomenais se referem à estrutura geral da consciência, como que se fossem os estados próprios de uma consciência. O estado como é, é o estado de primeira pessoa, impossível de ser transferido.

Tratando do ponto de vista da neurociência, há uma consciência de acesso que contém informações que podem ser utilizadas pelo organismo. Esse estado disponibiliza informações para outras partes da consciência e são eles podem ser verificados por experimentos cerebrais. Para Dennett, os estados conscientes são narrativas em tempo real, um fluxo contínuo criado pela mente.

Consciência como entidade. Atualmente, para grande parte dos pesquisadores, a consciência não é vista como uma coisa, mas como uma propriedade ou um aspecto de alguma coisa, embora alguns defendam que a consciência pode ser algo tão real como, por exemplo, um campo eletromagnético. Sabemos que, para Chalmers, a consciência é algo tão básico quanto a própria matéria, num tipo de dualismo que não trata a consciência de modo sobrenatural, mas que pode ser estudado dentro de uma ciência da natureza.

Problemas. Aqui começa a segunda aula a partir de uma divisão que Vitor faz do artigo da SEP, quando se enumeram três problemas centrais que uma teoria da consciência deve tratar: o descritivo (o que é a consciência?), o explicativo (como ela existe) e o funcional (por que existe?). Ele abre um parêntese para falar de Harari, que separa a inteligência da consciência, podendo haver seres inteligentes que não são conscientes. A inteligência permite alcançar objetivos e se relacionar com o ambiente, como o fazem bactérias ou plantas e mesmo processos no nosso organismo, abrindo brecha para a inteligência artificial. Já a consciência é associada aos sentimentos.

A questão descritiva. Vitor comenta que é uma questão filosófica a da definição do conceito, de escolha das variáveis. De todo modo a SEP traz características da consciência, como dados de primeira e terceira pessoas: por introspecção [supostamente] temos acesso à observação interior, não disponível a outrem, mas que outros a podem medir pela atividade cerebral ou comportamento. O tão comentado qualia, as sensações cruas da experiência, não objetivas e que não temos certeza se são ou não as mesmas sensações de outrem.

Falamos da estrutura fenomenal, acima, que é o modo como conhecemos a realidade, como organizamos o conhecimento, com tempo, espaço e causalidade. Ela não coincide com a estrutura do mundo, necessariamente, nem como outros seres a conhecem. Auto Perspectiva envolve um “eu” ao qual às experiências se referem. É esse “eu” que sente dor. Mas pode haver mentes sem consciência, comenta Vitor, como os sistemas complexos que não se reportam a esse “eu”[iv]. Unidade se refere à estrutura integrada e coerente da consciência. É a consciência que unifica o fluxo e seleciona o que aparece em perspectiva, o foco. Já as características da intencionalidade e transparência, primeiro temos a consciência de algo, quer dizer, a consciência pressupõe um objeto. Mas é interessante que nós não “vemos” essa intencionalidade, só vemos a coisa, é como se não houvesse a intencionalidade em si. O fato de usar óculos pode enfatizar esse caráter, que não aparece naturalmente. Por fim, o fluxo dinâmico trata do processo de como experienciamos a realidade como em constante mudança, como fluida, caracterizada por William James como “fluxo de consciência”.

A questão explicativa. Mas como pode existir o fenômeno da consciência? Ela pode ser algo próprio da realidade ou que dela emerge. Podemos pensar na consciência de acesso, quando lembramos de alguma informação que já obtivemos e podemos utilizá-la. Ou na consciência fenomenal, que se refere à experiência subjetiva, o famoso problema difícil. Há uma lacuna explicativa entre uma atividade cerebral e um sentimento: como ocorre esse salto? Ainda não sabemos, embora reducionistas tendam a tratar a mente somente por meio de processos neurais e seus opositores defendem que ela é irredutível, fundamental como o espaço e o tempo (como os dualistas). Fisicalistas entendem que um dia vamos descobrir, com o progresso científico, como pensam Patricia Churchland e Daniel Dennett. Os dualistas a veem como algo além do físico, que não pode ser explicado por processos materiais, mas que ainda assim é natural.

A questão funcional. E, por que a consciência existe? Se não tem efeitos causais é epifenomenal[v], um subproduto (como pensa Huxley), não sendo aspecto decisivo do comportamento. Porém o entendimento dominante é que ela tem interferência no comportamento (como sentir dor e nos levar a evitar o perigo) fazendo parte do processo adaptativo. Por exemplo, um processo consciente é controlado e nos ajuda a lidar com condições novas e complexas, em oposição ao comportamento impulsivo oriundo de uma carga genética preestabelecida. 

A autoconsciência nos permite entender que nós e os outros pensamos e entendemos as questões de maneira diferente e podemos nos posicionar socialmente, influenciando na melhoria da comunicação e relacionamento. A consciência também organiza a experiência e torna as informações disponíveis para nós, do ponto de vista interno.  Vitor ressalta que somos capazes de captar elementos altamente improváveis, diferentemente de uma inteligência artificial que trabalha com probabilidades e sem a sensibilidade.

Assim, conclui-se um panorama dos principais aspectos e teorias da consciência que ainda estão em disputa aberta no meio filosófico.



[i] Abarca duas aulas do curso de Vitor Lima no INEF que, por sua vez, usa a Enciclopédia de Filosofia da Universidade de Stanford (SEP – Stanford Enciclopedy of Philosopy): https://plato.stanford.edu/entries/consciousness/.

[ii] Aqui contamos com a ajuda da IA para gerar o resumo do qual fizemos apropriações.

[iii] Eliminativismo em perspectiva: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2025/03/eliminativismo.html.

[iv] Ver eliminativismo, também.

[iv] Ver https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2018/03/introducao-ao-epifenomenalismo.html. 

segunda-feira, 31 de março de 2025

Eliminativismo

Reflexões sobre o materialismo eliminativo[i]

Para o materialismo eliminativista, o que nós chamamos de mente simplesmente não existe, nem tampouco estados mentais. Tributário do fisicalismo, que ainda admitia a existência da mente, ele se pretende mais radical e se choca com o entendimento do senso comum, notoriamente vinculado ao cartesianismo[ii], de que há uma mente e que ela é acessível em primeira pessoa, isto é, sou eu que sei o que tem na minha mente (ou só eu que sei).

De acordo com as nossas fontes, foi Sellars quem, em 1956, introduziu a ideia de que o conceito de mente é uma estrutura teórica herdada culturalmente e usada no senso comum[iii]. Já em 63, Feyerabend tratou a folk psychology como falsa porque os estados mentais não seriam físicos e assim não teriam lugar no mundo físico[iv].

Então, pelo eliminativismo, o que o senso comum pensa sobre a mente está errado. Entretanto, ele se declara no caminho da ciência, que vai descartando “mitos”, conceitos que vão sendo eliminados, por um lado, ou por uma mudança de termos, como de “vermes” para “agentes infecciosos”, conforme Vitor Lima. Há uma mudança para termos mais precisos. Resumindo, cambaleia entre “não existem estados mentais” ou “estados mentais são estados cerebrais”. Vitor cita texto de Lycan de que a segunda tese seria um tipo de materialismo redutivista[v]

Mas é o casal Churchland, os principais defensores do materialismo eliminativo e do abandono da psicologia popular e seus conceitos, que tendem a serem extintos pela neurociência. A psicologia popular é um tipo de teoria das teorias e generaliza o modo como agimos, por exemplo, baseado em “crenças” ou conjunto de explicações sobre como as coisas funcionam, calcado em suposições não evidentes (postulados). Postulam-se crenças e dores como existentes, com aspectos causais (que influenciam nas ações) e com intencionalidade (como tendo conteúdo). Isso oriundo da cultura, uma construção teórica. Outra característica do materialismo eliminativo é que concorda com o dualista ao dizer que a mente não pode ser reduzida ao cérebro, mas simplesmente porque ela não existe. 

Vitor traz a visão de Steven Savitt sobre mudanças de teoria, que podem ser ontologicamente conservadoras ou ontologicamente radicais. As primeiras não descartam os conceitos anteriores, mas os reclassificam. Já para as segundas, caso do materialismo eliminativo, há descarte de conceitos, como uma crença que não possui referência real. Ocorre uma eliminação radical de conceitos como dor, desejo e crença em prol de uma nomenclatura mais precisa para esses fenômenos.

Mas há também algo de conservador em variantes do eliminativismo, como a “dissolução gentil” de conceitos, no exemplo citado por Vitor, ao chamar um vegetal de legume, no senso comum, se confundindo com o fisicalismo redutivista. Para Paul Griffiths, uma humilhação é uma construção social, dependendo de cada local e assim por diante[vi]. Entretanto, ao buscar uma nomenclatura exata ficamos à mercê de qual o nível da precisão. 

Trazendo mais para perto os problemas da psicologia popular ou da “teoria-teoria”, Churchland ressalta a dificuldade de se explicar fenômenos mentais complexos como sonhos, doenças mentais e aprendizados. Nesse sentido, as teorias são muito amplas e de difícil poder explicativo porque não se aprofundam exatamente no cérebro, em termos de conceitos científicos.

Lembremos que na física popular antiga havia a ideia de que um objeto cai porque ele tem por finalidade tender ao chão. Já a biologia popular também foi muito aceita no sentido de dizer, durante milênios, que doenças eram causadas por maus espíritos.  Ou seja, não é porque uma teoria é amplamente aceita que ela é verdadeira. Muito da teoria popular da mente é oriunda de Descartes e a via da introspecção, pela qual acreditamos piamente no que está dentro de nós, como se fosse um acesso privilegiado. É como se houvesse algo “lá dentro”, mas é o mito cartesiano[vii].

Pelo uso da psicologia popular, podemos até usar expressões como “Eu desejo uma fatia de melancia” ou “Eu sinto meu pé ardendo”, mas disso não se deduz que haja algo como um desejo ou uma crença dentro de nós. A eficiência da psicologia popular se dá porque uma crença tem um formato linguístico com substantivo, verbo e predicado. Esse é um postulado da psicologia popular e, além disso, crenças têm um conteúdo semântico, para além da sintaxe, elas significam alguma coisa. Se parece que faz sentido falar da mente dessa forma, com um discurso linguístico, o eliminativista vai dizer que o funcionamento do cérebro é muito diferente disso. Parece que o órgão mesmo não processa informação dessa forma.

Filosofia da mente e filosofia da linguagem. E Vitor traça uma importante correlação entre filosofia da mente e filosofia da linguagem: se o problema da filosofia da mente é entender como cérebro e a mente se relacionam, sendo duas coisas separadas, o problema da filosofia da linguagem é determinar como uma palavra se relaciona com uma coisa no mundo, como se dá a atribuição do significado. Podemos notar que, mesmo a teoria da referência, que é a principal teoria da linguagem, enfrenta muitos problemas, como explicar que há palavras com significado, mas que não se referenciam a nada[viii]. Isto é, parece que a linguagem funciona desse jeito, porém não há explicação satisfatória, ou exaustiva. E, da mesma forma que é intuitivo que a palavra significa a coisa, também o é que a mente se relaciona com o cérebro, mas “mente”, “desejo”, “comunicação”, “significado” - isso tudo não é explicado por uma estrutura linguística, provavelmente, diriam os eliminativistas.

Teoria dos sistemas dinâmicos. Alternativamente, podemos pensar na teoria dos sistemas dinâmicos, de acordo com Vitor, para tematizar sistemas que possam explicar o funcionamento da mente sem se referir a algo consciente, intencional ou que delibere. Um sistema é uma composição de elementos que seguem uma ordem interna, que é própria a ele. Sendo dinâmico, significa que ele não precisa ter uma vida interior. Por exemplo, o sistema climático no qual diversos elementos interagem: atmosfera, clima, entre outros. Neles, há sistemas de equações que visam explicar seu funcionamento. No caso da mente, há o agente cognitivo, um corpo e um ambiente. Então, haverá uma teoria científica capaz de explicar como esse sistema funciona.

Modelo conexionista. Outra abordagem tratada por Vitor, é explicar modelos que processam informação sem a necessidade de recorrer a uma estrutura linguística. Aqui a abordagem é distribuída, há aprendizado por meio dos ajustes das conexões e a interação em rede faz emergir um padrão complexo. Como exemplo, o sistema imunológico, que também é dinâmico, mas composto por uma rede de células que reagem a agentes invasores, sem um comando central. Esse esquema é utilizado para os modelos de linguagem (LLM), por exemplo. O cérebro, nesse caso, é uma grande rede em que cada neurônio processa suas informações sem uma mente centralizadora.

Com explicações como essa, noções como liberdade e livre-arbítrio caem por terra. Segundo Vitor, lembrando Nietzsche, são ilusões que tem como base a gramática da linguagem.

Qualia. Tratado como o terror do fisicalismo, as qualidades subjetivas da experiência não conseguem ser explicadas por ele. Dennett dirá que a dor, tida como algo infalível e ruim, pode ser relatada, sob efeito de algumas drogas, como algo que pode ser suportado. É o fenômeno chamado de dissociação reativa, que não é bem subjetivo, mas é uma reação química. Vitor cita o artigo “Quining Qualia” (1988), que questiona as características de infalibilidade e natureza privada. Dennett traz o exemplo da ilusão de Muller-Lyer para mostrar que, não somente nossa percepção do mundo externo pode ser enganosa, mas também a introspecção, quando nos faz acreditar que experimentamos qualias da forma como imaginamos. Ora, mesmo o “olhar para dentro” é imbuído de teorias e vieses, dependentes de nossa cultura.

Alguns problemas do Eliminativismo. Auto refutação: se crenças não existem, precisamos acreditar nessa afirmação anterior, o que não deixa de ser uma crença, embora os eliminativistas possam dizer que a ciência poderá abrir caminho para afirmações independentes da crença. Por outro lado, não se pode negar o sucesso da psicologia popular para explicar e prever comportamentos - esse seria o argumento da melhor explicação, mas que o eliminativista diria que uma teoria pode ser bem-sucedida mesmo estando errada (como, por exemplo, a teoria do flogisto, antiga teoria da combustão). Por fim, Stephen Stich, a despeito dos conceitos de crenças e desejos não se referirem a nada no cérebro, vai questionar exatamente o que quer dizer essa falha da referência. Mas, é a crença que não existe ou é o nosso conceito de crença que requer melhor definição? Talvez, ambas as questões mereçam reflexão.

Vitor conclui: se radical, o materialismo eliminativo, quando trata a mente quando algo distante do senso comum, não é somente uma negação, mas uma outra forma de “dizer” o que é uma mente.



[i] Este texto se baseia nas aulas de Victor Lima no Youtube (@istonaoefilosofia, só disponíveis por uma semana). O professor usa como base o artigo “Materialismo Eliminativo” da Enciclopédia de Filosofia de Stanford. Acesso em 23/03/2025: https://plato.stanford.edu/entries/materialism-eliminative/ (William Ramsey).

[ii] A mente firmemente é o que resiste ao edifício demolido pela dúvida hiperbólica.

[iii] Para ler: https://www.ditext.com/sellars/epm.html. EMPIRICISM AND THE PHILOSOPHY OF MIND by Wilfrid Sellars. This paper was first presented as the University of London Special Lectures on Philosophy for 1955-56, delivered on March 1, 8, and 15, 1956, under the title "The Myth of the Given: Three Lectures on Empiricism and the Philosophy of Mind.". Vale a pena rever o mito do dado, também.

[iv] Mental events and the brain: https://philpapers.org/rec/FEYCME. Feyerabend, Paul K. (1963). Comment: Mental events and the brain. Journal of Philosophy 60 (11):295-296.

[v] Para ver: Lycan, William G. & Pappas, George S. (1972). What is eliminative materialism? Australasian Journal of Philosophy 50 (2):149-59.

[vi] Para ver: https://press.uchicago.edu/ucp/books/book/chicago/W/bo3623449.html. What Emotions Really Are - The Problem of Psychological Categories. Paul E. Griffiths.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

Só sei que nada sei

Esse texto traz notas sobre o diálogo Teeteto[i]

Podemos perceber, no diálogo do Teeteto, a aplicação do método maiêutico de Sócrates que visa a parturição de um conhecimento novo por Teeteto, jovem, mas promissor aprendiz. A questão principal de Sócrates é exatamente tentar delinear o que é o conhecimento e ele luta contra a concepção estabelecida por Protágoras de que conhecimento é percepção, conforme 1.) “Penso, portanto, que aquele que conhece qualquer coisa, percebe o que conhece; e, como aparece no momento, o conhecimento não passa de percepção” (Teeteto falando, p. 70) e 2.) “... a que Protágoras costumava apresentar ... o ser humano é a medida de todas as coisas” (Sócrates falando, p. 70).

Em boa parte do diálogo de Platão, Sócrates vai lidar com essa concepção vigente e chegará mesmo a fazer Teeteto parir essa opinião, de que percepção é conhecimento, mas logo irá subtrair esse primogênito por se mostrar equivocado(p. 86). Há alguns pontos, que podemos destacar, contrários a essa tese e começamos por verificar que ela se baseia na percepção que é diferente em cada pessoa e, também, sobre coisas individuais, e cada indivíduo irá ter uma a sua visão. Ocorre que, o que aparece está em constante mudança tornando difícil o conhecimento, isso estaria no campo do fenômeno e não do ser. Sócrates localiza esse debate na tradição, com Protágoras, Heráclito e Empédocles defendendo que as coisas estão em fluxo constante contra Parmênides, para quem a realidade é uma e imóvel, com a célebre citação de que o ser é e o não-ser não é[ii].

A argumentação é longa e passa por pontos como a análise do movimento e se ele é a causa do ser pois tudo o que existe está em movimento, que pode ser um movimento local ou dos astros, mas também, nesse sentido, nada aparece como ele, pois muda. Sócrates também considera o ponto de vista do nosso interior, isto é, há a percepção do eu e o objeto percebido no mundo, mas volta a reforçar que as coisas que aparecem não são, por conta do fluxo do vir a ser, reforçando a diferenciação entre percepção e conhecimento.

Um ponto interessante na argumentação é que, para Sócrates, ao basear o conhecimento na percepção individual, Protágoras faz com que cada um seja dono de sua verdade e com isso agrada a sua plateia. Mas a verdade para um pode ser falsa para outro, o que deixaria a questão aberta para disputas. Ao questionar a percepção, Sócrates também traz o problema do conhecimento pelos sentidos e argumenta que por eles não se chega na apreensão do ser e da verdade, mas pelo raciocínio, que seria uma atividade da alma que pode atingir as coisas que são.

Há, então, a hipótese de o conhecimento ser um tipo de opinião verdadeira, investiga-se como se forma uma opinião e suas possibilidades de erro bem como a divisão entre conhecer (epistemologia) e ser (ontologia) e se distinguirá entre uma opinião falsa e uma opinião do que não é. Aqui podemos lembrar que muitas vezes a causa do erro é uma opinião sobre algo que não conhecemos, ou imaginamos que conhecemos ou de algo a que associamos um pensamento errático a uma percepção.

A argumentação é longa e complexa e não teríamos condições de fazer um aprofundamento, trata-se de uma primeira aproximação dos principais pontos que nos chamaram a atenção. Mas, parece que a indicação de Sócrates de conhecimento passa pela capacidade de definir algo por uma característica que o torne distinto dos demais, conforme p. 166:

“conclusivamente, aquele que possui a opinião correta sobre qualquer coisa e acrescenta a isso uma compreensão da diferença que a distingue das outras coisas terá adquirido conhecimento dessa coisa, da qual detinha anteriormente somente opinião.”

Embora, ao final, Sócrates afirme que “A conclusão é que nem a percepção, Teeteto, nem a opinião verdadeira, nem a explicação racional associada à opinião verdadeira poderiam ser conhecimento” (p. 169). Porém, Teeteto continua grávido e pode seguir estimulado a continuar tal tipo de diálogo, mas “munido da sabedoria de não pensar que sabes aquilo que não sabes” (p. 169).



[i] Notas sobre o diálogo Teeteto (ou do Conhecimento). PLATÃO. Diálogos I – Teeteto, Sofista, Protágoras. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2007.

[ii] Sobre Parmênides, nota de rodapé 77 e https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2025/02/o-problema-de-parmenides.html. 

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Funcionalismo atualizado

Esse texto retoma os principais aspectos do funcionalismo[i]

O funcionalismo se preocupa com o papel desempenhado pelos estados mentais, ao invés de sua composição, como fazem as abordagens materialista e dualista, em geral. Assim, se um robô expressa dor, então ele sente dor, como nós, independentemente de ter um cérebro orgânico como o nosso. É interessante que o funcionalismo se filia a Aristóteles, Hobbes e Turing.

Para o estagirita, a alma expressava nossa racionalidade, isto é, ela que permitia que fossemos um ser humano racional, capacidade que nos define enquanto espécie. Vitor faz um paralelo com o pleito kantiano da condição de possibilidade do conhecimento, ante o pêndulo entre racionalistas e empiristas. Kant desloca a questão para outra abordagem, assim como o funcionalista também se esquiva do debate entre mente e matéria.

Já Hobbes via nosso organismo como uma máquina e o nosso raciocínio como um cálculo matemático, cada qual com uma função[ii]. Por fim, Turing criou um teste que poderia verificar se uma máquina seria capaz de pensar, levando alguém a confundi-la com um humano[iii], aí identificando pensamentos com estados de um sistema. No nosso ponto de vista, quando o teste de Turing indica que um robô deixa de ser um robô e passa a ter uma mente, parece que estamos próximos do emergentismo ou epifenomenalismo[iv].

Vitor também associa o funcionalismo ao behaviorismo[v], seja o lógico, que trata de estados mentais (introspectivos) como sendo comportamentos observáveis, ou o científico que se preocupa com ações e reações ao ambiente, isto é, por que um comportamento ocorre, já no campo psicológico. Por ele seria possível “medir” o comportamento, não sendo necessário explicar as ações do “homúnculo” interior. Mas esse homúnculo interior teria que recorrer, também, a outro homúnculo [interior] e assim sucessivamente. Como problema do behaviorismo, Vitor coloca que podemos ter estados mentais sem comportamento e vice-versa. Ou mesmo fingir, omitir.

Então tratemos agora dos tipos de funcionalismo: o de estado de máquina (teorias de IA), o analítico, oriundo do behaviorismo empírico e o psicofuncionalismo que provém do behaviorismo lógico. O primeiro trata a mente como sistema que processa informações, analogamente a um computador[vi], baseado em entradas, estados e saídas (com regras). Nesse sentido, explica Vitor, o funcionalismo vai mais além do que o behaviorismo, pois não analisa somente comportamento, ele tem que pressupor um estado interno que vai levar ao comportamento. Também ressalta que o software (a mente) independe do substrato físico.

O funcionalismo analítico, além da base do de estado de máquina, busca utilizar como explicação um vocabulário de senso comum, não técnico. Fica o problema de diferenciar ou caracterizar estados mentais, de maneira unívoca. Através dele também poderíamos atribuir estados mentais a sistemas sem qualquer consciência, porque poderíamos atribuir a eles as descrições do senso comum[vii]. Já o psicofuncionalismo, que responde a esse problema, elabora descrições com base no vocabulário psicológico, mas, nesse caso, também vai rejeitar estados mentais sem evidência rigorosa. Há uma crítica de Ned Block, como cita Vitor, que se muito rigoroso, pode eliminar vidas inteligentes não examinadas em laboratório. Abaixo o “tabelão do Vitor”:

Texto

O conteúdo gerado por IA pode estar incorreto.



[i] Notas sobre a aula de Vitor Lima sobre o funcionalismo no curso de Filosofia da Mente, canal INEF: https://www.youtube.com/@istonaoefilosofia. Conforme ele, a fonte original é a Stanford Encyclopedia of Philosophy, artigo no link: https://plato.stanford.edu/entries/functionalism/.

[vi] Assim como Hobbes associou o corpo a um autômato, como observa Vitor, nos situando na era tecnológica do nosso tempo.

[vii] Como cita Vitor: “o mercado acordou de mau humor”. Ou a terra é gaia.