sábado, 10 de maio de 2025

Um pouco de estória

Versa que só há ficção entre a realidade e nós[i]

Vejamos que interessante a seguinte divisão.

Realidade objetiva. Essa é, “de fato”, a realidade do mundo, das coisas, como, por exemplo, pedras, árvores e astros. É uma realidade difícil de negar porque se apresenta a nossos olhos e seria por ela que a ciência deveria se guiar, na medida em que se funda em observações empíricas. Ocorre que nessa realidade há animais que possuem realidade subjetiva.

Realidade subjetiva. Essa é a realidade mais inatingível e duvidosa porque é uma realidade privada, fora do alcance de um terceiro. Um sentimento ou uma dor, por mais que possa ser expresso ou dito, não pode ser comprovado de maneira cabal, embora possa haver maneiras de medi-los, como um esfigmomanômetro ou tomógrafo. A realidade subjetiva é composta também de pensamentos e, acrescenta-se a isso, que parece haver uma mente ou uma consciência que cria uma subjetividade que permite a seu hospedeiro criar suas narrativas. Contudo, para fugir do solipsismo, em algum momento essa narrativa precisa ser contada para alguém que possa compartilhar dela e é aí que surge a terceira realidade.

Realidade intersubjetiva. É essa realidade que permite o constructo imaginário, até então de posse somente humana, e que funda a forma como pensamos e agimos. É nessa realidade que habitam as leis, os estados e toda e qualquer criação humana. Ora, se parece que a verdade reside na realidade objetiva é mediante uma realidade intersubjetiva aceita pelas realidades subjetivas que se vive e morre, seja ou não por causas naturais, e tudo isso é muito envolto em ficção.

Diagrama, Diagrama de Venn

três realidades sobrepostas difícies de enxergar, tanto separadas quanto seus limites

De posse disso, podemos concluir que, ainda que exista uma verdade sobre a realidade objetiva, jamais teremos acesso a ela porque ela é multifacetada, complexa e com várias camadas sobrepostas. Todas essas características são expressas de maneira intersubjetiva por um ponto de vista subjetivo que é limitado e por si só incapaz de descrevê-la integralmente por que ele mesmo está nela, por mais que a intersubjetividade possa ter um ideal de aperfeiçoamento coletivo. E seria uma petição de princípio uma descrição externa de um ponto de vista interno.

Nós, humanos, somos parte da realidade objetiva e não conseguimos nem mesmo nos compreendermos em nossa totalidade. Também não conseguimos compreender a totalidade do outro e de toda a realidade porque estamos inseridos nela. Além disso, nossas compreensões podem ser formuladas por uma linguagem, ela mesma parte da realidade intersubjetiva. E é pela linguagem que toda a realidade intersubjetividade é criada e mantida, por meio de estórias que, bem contadas, criam ficções irresistíveis, convincentes e que arrastam e arrasam multidões.



[i] Um breve texto a partir dos capítulos 1, 2 II de HARARI, Yuval Noah. Nexus: Uma breve história das redes de informação, da Idade da Pedra à inteligência Artificial. Tradução de Berilo Vargas e Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2024. 

quarta-feira, 7 de maio de 2025

O fim das certezas - prólogo

Passa por aspectos que pedem por uma nova racionalidade[i]

1. Dilema do determinismo. Prigogine inicia o prólogo citando o dilema do determinismo, termo cunhado por Willian James, que exprime a tensão no senso comum, ilustrada por Popper, entre uma série causal e a escolha livre. São questões que vemos bastante nesse espaço e falamos na última reflexão[ii]. Porém ele enfatiza a questão do tempo, que sentimos em nossa existência e que foi introduzido na física por Galileu e utilizada na dinâmica newtoniana e que depois Einstein afirmou ser uma ilusão.

2. Paradoxo do tempo. Esse é o ponto crucial para Prigogine, não há flecha do tempo na descrição fundamental da natureza, para muitos físicos, embora em outras áreas como biologia e ciências humanas, passado e futuro desempenhem papéis diferentes. Então, transportando o dilema do determinismo para o campo da ciência física, surge o paradoxo do tempo, que é o tratamento por ela de uma simetria atemporal.

3. Ruptura. De acordo com Prigogine, o paradoxo do tempo foi identificado por Ludwig Boltzmann[iii], no século XIX, ao propor ao modo darwiniano o tratamento dos fenômenos físicos em termos evolutivos e, assim, distinguir entre passado e futuro. Ele ressalta que a flecha do tempo era uma ameaça para aquela proposta newtoniana “ideal, objetiva e completa” e a nova física quântica, que a incorpora, também não deveria destruir o edifício construído sobre a física clássica.

4. Desenvolvimento da física. Nesse campo de disputa, autores buscam relegar a flecha do tempo à descrição humana da natureza, campo fenomenológico, mas Prigogine defende a revisão da noção do tempo tal qual foi formulada por Galileu, a partir do que ele chama de “desenvolvimento espetacular da física.”

5. Irreversibilidade. Esse desenvolvimento fez surgir processos de não equilíbrio com tempo unidirecional, que antes eram simples e acessíveis pelas leis da dinâmica, como os que ocorrem na radiação a laser e na formação de turbilhões, que ressignificam a irreversibilidade não mais tratando-a como mera aparência. Citando-o, podemos ver a que ponto chega a necessidade de os compreender: “Sem a coerência dos processos irreversíveis de não equilíbrio, o aparecimento da vida na Terra seria inconcebível.” (p. 12).

 6. Um novo sentido. Por outro lado, o surgimento de sistemas dinâmicos instáveis reverte a noção de estabilidade, como o caos que é usado desde a cosmologia até a economia e que impacta a formulação das leis fundamentais da física. Há então um novo sentido para uma física que era completa e trabalhava com os conceitos de certeza, previsibilidade e possibilidade retrodizer o passado.

7. Paradoxo quântico. Um problema que o paradoxo do tempo pode resolver, de acordo com Prigogine, é o do papel do observador na teoria quântica, relacionado com a redução da função de onda[iv]. Se era o observador que quebrava a simetria temporal, com a introdução da instabilidade naquela teoria, ele perde seu papel singular e traz a teoria para uma formulação realista, porém estatística.

8. O tempo preexistia ao universo? De posse das transformações na dinâmica clássica e física quântica, Prigogine enfatiza que agora estamos no campo das possibilidades e não mais certezas e leis, e isso pode colocar um novo olhar no evento primordial que a física chama de big bang e se ele instaurou o tempo.

9. Tempo eterno. Essas novas fronteiras do conhecimento, se podem ser espaço para especulações, abrem possibilidades conceituais e permitem conceber que o big bang é o ponto de partida do universo, mas não o do tempo. O universo é uma instabilidade produzida no meio do tempo e Prigogine afirma: “Nessa concepção, o tempo não tem início e provavelmente não tem fim!” (p. 13).

10. Aplicabilidade. Por outro lado, se podemos a flecha do tempo pode ser afirmada nas fronteiras da física, há a questão de tratar as leis da natureza no campo experimental como na física e química.

11. Nova racionalidade. Prigogine também mostra que essa questão é crucial para o pensamento ocidental e já vendo debatida desde a era pré-socrática. Trata-se de conflito entre, por um lado o saber objetivo e de outro o ideal humanista de liberdade e democracia. Como é possível a ética em um mundo determinista? É crucial sairmos desse dualismo que opõe os pares ciência / certeza e probabilidade / ignorância.

12. Apenas o começo. Ele ressalta que, se Hawking entende que estamos próximos do fim, de decifrar o pensamento de Deus, em seu livro Breve história do tempo, para ele é apenas o começo de uma nova ciência que foge da idealidade e abre espaço para a criatividade humana.

É essa evolução das ideias sobre a natureza que Prigogine pretende desbravar inclusive comentando que já há simulações feitas em computador para novas predições. A excursão por uma ciência em evolução.



[i] Resenha do prólogo de PRIGOGINE, Ilya. O Fim das Certezas: Tempo, Caos e as Leis da Natureza. 2. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2011.

[iii] Ludwig Eduard Boltzmann foi um físico austríaco, conhecido pelo seu trabalho no campo da termodinâmica estatística e considerado um dos fundadores da mecânica estatística. Foi defensor da teoria atómica, numa época em que ela ainda era bem controversa. https://pt.wikipedia.org/wiki/Ludwig_Boltzmann.

[iv] Uma explicação pode ser vista aqui: Superposição quântica, colapso da função de onda e combate à desinformação em física quântica. (https://www.youtube.com/watch?v=bQf5LugBy3Y) FÍSICA Prof. Daniel.

sexta-feira, 2 de maio de 2025

Introdução ao livre-arbítrio

Aborda aspectos desse conceito tão complexo e multifacetado[i]

A questão da liberdade. Vitor Lima introduz o tema problematizando a questão da liberdade[ii], se agimos espontaneamente ou envoltos pela cultura e sociedade e que levanta reflexões existenciais, metafísicas e éticas. O livre-arbítrio, inicialmente, estaria ligado ao controle de nossas ações e se relacionando com a filosofia da mente, dependendo de cada teoria. Assim, a causalidade das ações pode ser livre (mente com natureza imaterial) ou determinada (mente física regulada por leis, possivelmente sem escolha). O desafio é explicar a liberdade dentro de um mundo físico, tema tratado no idealismo alemão, conforme lembra Lima, pelo escape da mente do mundo material rumo ao ideal, seja um “eu” ou o absoluto.

Liberdade e filosofia da mente. Entrando na filosofia da mente, para o dualismo a mente, sendo imaterial, não está sujeita a leis físicas, abrindo espaço para a vontade livre, mas trazendo problemas na explicação de como a mente se relaciona com o corpo, sendo coisas diferentes. Já o fisicalismo, postulando uma mente física, precisa responder se há liberdade. Se parece que as teorias físicalistas, mais populares atualmente, tem maior proximidade com a ciência, conforme ressalta Lima, ainda há falta de explicação. Outra teoria importante, o funcionalismo pode pleitear processos que sejam ou não determinísticos, independentemente do suporte material. Nessa visão de mente como software e dentro de um sistema arquitetural e com regras, há dificuldade em encontrar a liberdade. Por fim, o eliminativismo interpreta o livre-arbítrio como um conceito que pode ser redefinido, tratando-o como ilusão porque não usa os termos da psicologia popular.

Temas centrais. Entrando em questões centrais do livre-arbítrio, Lima contrasta liberdade de ação com autodeterminação, o valor de uma ação moral e sua responsabilização e implicações sobre qual a natureza da realidade e o sistema ético que a ela está atrelado.

Determinismo. Mas é o determinismo[iii] ponto de partida para Vitor Lima, conceituado como mundo regido por leis naturais e nada além disso, do ponto de vista metafísico, isto é, mesmo que algo nos pareça “surpreendente”, como que com uma causa outra qualquer, isso seria porque não conhecemos (do ponto de vista epistemológico) todas as variáveis que atuam sobre o mundo físico, se mantido esse enfoque determinista.

Determinismo e correlações. Vitor associa o determinismo ao princípio de razão suficiente[iv] (PRS) proposto por Leibniz, isto é, tudo o que existe tem uma razão suficiente que o causa, como uma explicação para as coisas serem como são, embora não restrito ao mundo físico, porque Deus entra na causa das razões como causa primeira, à maneira de Aristóteles ou Tomás. Então, o determinismo não busca a cadeia de causas, como o PRS. Vitor também distingue o determinismo do fatalismo, quando as coisas acontecem independentemente de uma ação, associado a algo sobrenatural: “aconteceu porque tinha que acontecer”. Por fim, o determinismo não se confunde com a previsibilidade, Vitor traz o exemplo do demônio de Laplace – uma entidade que tudo sabe e conhece todas as leis – ela poderia prever o futuro? Vitor ressalta que o determinismo independe se podemos ou não prever o futuro (e vice-versa), mesmo uma inteligência infinita teria dificuldade de lidar com a complexidade do caos.

Inserindo livre-arbítrio pela visão antiga-helenística. Voltando ao livre-arbítrio, Lima pontua que este é tema em debate e remete sua origem seja a Agostinho (origem na intenção) ou ao Epiteto (origem externa). Em Platão, há conceituação da razão como guia de instintos e desejos, trazendo harmonia interna e implicando liberdade. Em Aristóteles parece que há um conceito de vontade que parte de um processo de deliberação interna, mesmo que baseado em fatores externos, mas garantido autonomia. Aristóteles não se vale de princípios universais, como é o caso platônico, o estagirita presta atenção nas situações particulares, mas ambos alçam a razão ao patamar elevado na condução das ações. Os estoicos e epicuristas acreditam que tudo é corpóreo e sujeito a leis naturais, portanto deterministas. Vitor pontua que os estoicos eram compatibilistas por aceitarem o livre-arbítrio no sentido de que nossas ações dependem de nós. Os epicuristas entendiam que a natureza da realidade podia ter desvios, fugindo de um determinismo rígido.

O livre-arbítrio na filosofia medieval. Então Vitor traz Agostinho que, neoplatônico, tem sua visão teológica e cristã e, nessa abordagem, busca incluir a liberdade humana (livre-arbítrio) dentro de um mundo criado por um Deus onisciente. E é por aí que o mal tem espaço para agir, a partir de uma vontade má que, lá na frente, buscará a salvação divina. Filosoficamente falando, em Agostinho a vontade é autodeterminante e racional, não determinada por fatores externos e nem por outras faculdades internas, como pontua Vitor. Embora os desejos nos desestabilizem, a verdadeira liberdade deve buscar o Bem – ideia platônica reguladora de uma realidade ordenada, agora transformada em Deus (transubstanciada?). Então, a liberdade é, contra intuitivamente, obedecer a Deus e não se manter indeterminada[v].

Modernos e contemporâneos. Resumidamente, a questão moral permeia o livre-arbítrio porque sem ele não teríamos responsabilidades pelos nossos atos, ainda que ela remeta a Deus como norma de ação. Por outro lado, a descrição do mundo é primariamente fisicalista, cientificista e dificulta a explicação do livre-arbítrio, quando podemos lembrar do PRS como pilar da metafísica moderna. Mas o livre-arbítrio se situa entre agir de outra forma ou autodeterminadamente, conciliando com a responsabilidade moral. Já Espinosa é uma voz destoante nesse debate porque traz uma visão necessitarista – as coisas acontecem assim porque deveriam acontecer, retirando margem de liberdade e sendo um cético radical do livre-arbítrio. Como o Deus de Espinosa[vi] é a natureza, ele não delibera, não pune e nem recompensa. Porém, é exatamente por não esperarmos uma recompensa que a ação moral deve ser virtuosa em si mesma. Não devemos desejar nada além do que deve ser, mas orientar o que queremos para o que irá acontecer, ou seja, desejar o que já aconteceria, aceitando a realidade. Nas palavras de Vitor Lima: “liberdade não é livre-arbítrio, mas harmonização entre aquilo que acontece e aquilo que você quer que aconteça”, não lutar contra a “verdade das coisas”.[vii]



[i] Conforme a aula do canal INEF no YT: https://youtu.be/DxQS_1Bi8o8, usa como fontes SEP: Determinismo causal https://plato.stanford.edu/entries/determinism-causal/ e livre-arbítrio https://plato.stanford.edu/entries/freewill/.

[ii] Lembremos, foi o primeiro tópico explorado nesse espaço, quando especulávamos de modo bem iniciante sobre temas aleatórios: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2013/11/liberdade-liberdade-liberdade.html.

[iii] Interessante, no nosso Espaço, Liberdade aparece muito e determinismo muito pouco. Aqui on passant: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2024/11/revisitando-o-mito-cartesiano.html, mas associado livre-arbítrio e ao mito. De toda forma vamos precisar olhar o Prigogine – ele fala de caos e ali pode abordar o assunto, a ver. Claro, essa oposição é tema clássico, lembremos a terceira antinomia, por aqui bastante abordada.

[v] Vitor passa lateralmente por Aquino que concilia a visão aristotélica com a cristã e também mantem a primazia da razão sobre a vontade.

[vi] Conforme https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2017/02/deus-ou-seja-natureza1.html e o resumo da IA: O texto discute a filosofia de Espinosa, focando em sua caracterização de Deus e sua visão revolucionária.  Espinosa contesta a visão tradicional de Deus, argumentando que Deus, ou seja, a Natureza, é a única substância, eterna e livre, que causa a si mesma e a todas as coisas no universo.  Ele rejeita a ideia de um Deus pessoal, com intelecto e vontade, que cria o mundo por escolha, e em vez disso, propõe uma "ontologia do necessário", onde tudo é determinado pela natureza divina.  Essa despersonalização de Deus tem implicações políticas, libertando o campo político da imagem de governantes com poderes divinos.

[vii] Ao final da aula, três breves assuntos foram tratados, registremos: 1.) dignidade do herói, oriundo da tragédia, mas que enfatiza o caráter do herói a seguir princípios para além dos atos de coragem; 2.) amor fati, que se refere a amar o próprio destino, tema tratado pelo estoicismo e Nietzsche, lidar com as dificuldades da vida; 3.) por fim lembrar que a conceituação determinista de universa está mais associada a uma visão de mundo clássica, hoje há espaço para a probabilidade, por meio da física do século XX.