domingo, 6 de junho de 2021

O Critério Renascentista da Verdade, a visão direta

Mostra o método por trás das navegações que, se influenciado pela tradição, a supera[i]

Vargas lembra que a Geografia, de Ptolomeu[ii] (século II d.C.), foi a base do Mapa Mundi no século XV e cujos processos astronômicos são válidos até hoje. Embora centralizada na Mesopotâmia, são mapas esféricos em oposição aos mapas medievais que representavam a terra como um disco plano (ex. o mapa das Etimologias de Santo Isidoro de Sevilha).

Ainda que com coordenadas imprecisas e, dadas as dificuldades para medições, a Geografia foi considerada certa por grandes cosmógrafos da época, incluindo aí o mapa usado por Colombo. Vargas credita a isso também o caráter matemático dos primeiros livros da Geografia e a autoridade do Almagesto[iii], baseada na episteme theoretike com caráter de verdade.

Se havia o critério da autoridade dos sábios da antiguidade clássica, com citações dessas duas obras de Ptolomeu em crônicas do descobrimento das Ilhas Atlânticas, um novo critério de verdade, a visão direta, surge quando os portugueses superam as supostas chamas líquidas do sol, que fariam o mar efervescer ao sul da África.

O método da ciência renascentista diverge da autoridade dos textos por contar com o que “pode ser visto”. A natureza não é mais criatura de Deus e fundamentada na mente divina, mas uma natureza panteísta, metafísica e de harmonia geométrica. A investigação pela visão fenomenológica apoiada na geometria supera o método analítico das epistemes gregas, mas ainda não é o empirismo que se funda no raciocínio indutivo.

Vargas ressalta que a lógica associada à confiança ilimitada na razão humana fez com que, na antiguidade e Idade Média, a discussão se baseasse em teses e não na enganosa observação sensível. Então, os portugueses revelaram um novo mundo à Humanidade e descobriam novas coisas pela visão direta, coisas que a teoria antiga não tinha experiência, porém levando em conta as bases anteriores.

O método se caracteriza por “abrir os olhos e ver”, para entender a razão por trás da natureza e a descrever ou desenhar, como o fez da Vinci: observar a natureza e pintá-la à risca. Por de trás do método leonardiano e mesmo no Voo dos Pássaros[iv] está uma natureza matemática geométrica e assente em princípios de movimento da Mecânica.

Mas, se é um conhecimento experimental, ele não se respalda em uma teoria prévia, como ocorre em Galileu, conforme Vargas: “É muito mais próximo da “experiência” vivida, do artista ou do técnico, do que da experiência teorizada dos cientistas modernos ou da tecnologia de hoje”.

Kepler, que institui a astronomia moderna, segue tais preceitos: ordem matemática da natureza, as figuras geométricas arquétipos na mente de Deus. A arquitetura do cosmos de Kepler, se verdadeira, apresenta sentido platônico e se permeia nas proporções harmoniosas. A teoria de Kepler, entretanto, só é verdadeira se as observações sensíveis concordam com o esquema arquetípico. É a ordem cósmica divina que presidia a natureza e o homem partilhando dessa natureza independente da vontade.

Por outro lado, coexistia uma tradição hermética, que considerava alterações no curso da natureza. É outro critério de verdade que Vargas nos traz. Temos Paracelso, filósofo químico contemporâneo de Copérnico, mas anterior a Kepler. Sua teoria alquímica também se valia da visão direta, mas que tinha uma procura nas viagens e sabedoria popular e se utilizava dos processos de combustão, vaporização e solidificação.

Paracelso, na alquimia, Kepler com a visão dos astros, Leonardo observando a realidade: todos guiados pelo critério de verdade lançado pelas navegações portuguesas.



[i] Conforme O Critério Renascentista da Verdade, Capítulo 6 de Vargas, M. (1994). Para uma filosofia da tecnologia. São Paulo: Alfa Omega.

[ii] Geografia foi uma obra feita pelo famoso astrônomo grego Cláudio Ptolomeu, que viveu nos séculos I e II d.C. Era um conjunto de oito volumes com conhecimentos científicos greco-romanos que incluíam conhecimentos de geografia como localização por coordenadas, ou seja, longitude e latitude. A obra foi traduzida e conservada pelos árabes durante a Idade Média e posteriormente impulsionou o desenvolvimento da cartografia. A primeira tradução para o árabe ocorreu no século IX e para o latim no ano de 1406. Conforme: https://pt.wikipedia.org/wiki/Geografia_(Ptolomeu).

[iii] Almagesto é um tratado matemático e astronômico escrito no século II por Cláudio Ptolomeu. A obra, escrita em grego, adota o modelo geocêntrico para o sistema solar, além de conter um extenso catálogo estelar. É um dos textos científicos mais influentes de todos os tempos, tendo sido autoridade no assunto desde a antiguidade, no império bizantino, no mundo árabe e na Europa ocidental ao longo da idade Média e Renascença até o século XVI, quando o surgiu o heliocentrismo de Copérnico. Conforme: https://pt.wikipedia.org/wiki/Almagesto.

[iv] O Códice sobre o Voo das Aves é um códice relativamente pequeno, registrado por volta de 1505 por Leonardo da Vinci. Compreende 18 folhas e mede 21 × 15 centímetros. Localizado atualmente na Biblioteca Reale em Turim, na Itália, o códice começa com um exame do comportamento de vôo das aves e propõe mecanismos para o vôo por máquinas. Leonardo construiu várias dessas máquinas e tentou lançá-las de uma colina perto de Florença. Conforme:  https://en.wikipedia.org/wiki/Codex_on_the_Flight_of_Birds.

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