sábado, 19 de junho de 2021

Lewis Mumford e a visão histórica da tecnologia

A construção do conceito do mito da máquina mostra que a técnica evolui enquanto a vida humana é depreciada [i]

Lewis Mumford, historiador, vê a máquina ampliando nossas capacidades ou “aliviando o ambiente” e tendendo ao autômato. Para ele, a técnica é a relação entre meio social e inovação e, a tecnologia, os procedimentos. Usa o jargão “a máquina” para tratar de todo o processo tecnológico que inclui máquinas (dispositivos), ferramentas, utilidades, etc.

O papel da técnica na civilização ocidental

Mumford trata da mecanização que atinge todos os processos orgânicos oriundos da disciplina de ferro dos monges beneditinos medievais e o ritmo imposto pelas horas canônicas, ritmo da máquina, que marca o tempo e permite quantificar. Conforme Cupani: “Para Mumford, o relógio (e não a máquina a vapor) é a máquina-chave da era industrial”. Assim como o espaço que, entre os séculos XIV e XVIII, passou de vinculado ao homem para sistema de magnitudes. Dessa maneira, o homem se afasta do mundo real e, por meio de abstrações, vai do capitalismo à ciência em uma busca de poder substituindo a economia das necessidades pela das aquisições.

E, um círculo virtuoso de técnica e capitalismo, favorece a invenção e produção de máquinas, porém mais em proveito particular que do bem geral. Nessa conjuntura está a mecanização como base da tecnologia científica. É “a máquina” essa visão mecanicista do mundo, união de ordem e poder alicerçados pelo comércio e a guerra.

Etapas do desenvolvimento tecnológico

Mumford define fases na evolução técnica com suas formas de gerar energia, alterar a produção e com efeitos na sociedade.

Etapa eotécnica (1000-1750): caracterizada pelo uso da água, madeira e ventos, o processo que leva à Revolução Industrial na Europa traz contribuições de diversas culturas (persa, chinesa, indiana). O ser humano vai deixando de ser o motor energético. Além da madeira, utiliza o vidro (janelas, lentes). É uma época de impessoalidade, das máquinas e autômatos, fundada nas invenções mecânicas e método experimental e Cupani destaca a imprensa. Por fim, há equilíbrio entre cultura e tecnologia, enriquecimento da vida humana, embora o capitalismo tenha avançado na exploração do homem.

Etapa paleotécnica (1750 ao final do XIX): caracterizada pelo uso do carvão e ferro, que sendo fontes de energia permanentes trazem a indústria inorgânica (mineração) superando a orgânica (têxtil). Acelera-se a produção em massa e exploração. A máquina, tecnologia e filosofia mecanicista provocam o desejo de ganho do empresário e enfraquecimento cultural (artes, diversão) e religioso. Conforme Mumford: “Isso porque um novo tipo de personalidade tinha surgido, uma abstração andante: o Homem Econômico – um neurótico de sucesso”.

A vida se degrada com pessoas amontoadas e depauperadas com o progresso escondendo mazelas e ignorando que o tempo passado foi melhor, mas suscitando noções como a luta de classes. Ainda que com grande avanço do maquinário que desembocará na fase neotécnica, que finalmente cumpre as promessas de Bacon e Leonardo e tendo como símbolo a estrada de ferro[ii], houve uma mudança axiológica da aceleração do tempo em busca de ganho.

Etapa neotécnica (até 1934): eletricidade e ligas metálicas, surge com o aperfeiçoamento, em 1832, da turbina de água onde colaboram ciência e tecnologia[iii]. Incremento da ciência e técnica especializada, porém sem formação humanística. Há maior rapidez nos transportes, comunicação instantânea, crescimento da automação. Se houve, por um lado, tentativa de reduzir o papel das máquinas, houve, também, recuperação das condições da era paleotécnica com cidades congestionadas, etc., ou seja, entre conquistas, problemas e compensações, questiona-se o papel da máquina no melhoramento da existência humana, principalmente por conta da associação ao capital.

O “mito da máquina”

 Trinta anos depois, Mumford avalia que somos, sim, homo sapiens e não homo faber. A produção humana supera a necessidade orgânica, haja vista nosso potencial cerebral que nos permitiu criar a linguagem e uma organização social que trouxe ordem cultural e nos deu certa estabilidade.

Então, é antes a mente que possibilita a criação de artefatos, como se vê no Neolítico até o surgimento da civilização em 3000 a.C., chamada por ele de grande máquina (big machine), que concentrou o poder e dominação nas mãos de uma minoria, organização, estruturação da população e o grande feito na construção da pirâmide de Quéops.

É uma megamáquina, constituída de seres humanos, que se prolonga ao longo dos tempos, entre aspectos positivos e negativos, acelerada por um capitalismo que afasta o artesanato tradicional em prol do poder. Impulso obsessivo de controlar natureza e vida que se inicia no XVII pela associação entre interesses humanos e pressões tecnológicas.

O pentágono do poder (poder – propriedade – produtividade – proveito – prestígio) marcha na direção do grande cérebro (computador) que pode nos eliminar. Segundo Mumford, só compreendendo nossa própria natureza poderemos controlar ou suprimir o que produzimos. Conforme a fórmula:

Se devemos evitar que a megatécnica continue controlando e deformando cada aspecto da cultura humana, seremos capazes de fazer isso tão somente com o auxílio de um modelo radicalmente diferente [de vida] derivado diretamente não das máquinas, mas dos organismos vivos e dos complexos orgânicos (ecossistemas).



[i] Conforme Cupani, Alberto. Filosofia da tecnologia: um convite. 3º ed. Florianópolis: Editora da UFSC, 2016. Capítulo 3: A visão do historiador. Podemos apreender há uma visão de progresso pessimista, diferente de outros autores, por exemplo Vieira Pinto. Da para notar semelhanças entre ambos.

[ii] A saber: eletricidade, escoamento de produção, regularidade e segurança.

[iii] Casamento perfeito ou maldito?

Nenhum comentário:

Postar um comentário