terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Teoria do significado de ninguém

Um breve mergulho na teoria comunicativa dos modernos e a passagem a Frege[i]

Função comunicativa da linguagem. Hacking enfatiza que os filósofos modernos (Hobbes etc.) se interessavam pela linguagem, mas é um anacronismo tentar enquadrá-los em alguma teoria do significado, conforme aquelas propostas por Alston: ideacional, referencial ou comportamental. Sabemos que, para eles, a linguagem estava associada com a teoria das ideias porque “palavras significam ideias”. Isso não quer dizer uma teoria ideacional do significado, porém sublinha a função comunicativa da linguagem: a tradução do discurso mental em palavras que são traduzidas de volta pelo ouvinte. Esse esquema pode exemplificar: faltante => ideias => tradução => palavras => tradução => ideias => ouvinte.

Tradutor ideacional. Parece, com isso, que a dupla tradução é bem-sucedida: forma-se a mesma sequência de ideias no falante e no ouvinte, mesmo que eles possam, eventualmente, discordar delas. Ocorre que o tradutor ideacional não dá um critério de identidade para as ideias na mente de cada falante. E Locke se pergunta se, pela percepção direta, o mesmo objeto pode produzir diferentes ideias em diferentes mentes ao mesmo tempo, mas descarta a questão.

Garantias físicas. Hacking nos lembra da herança da teoria cartesiana do ego pelo qual a fonte de erros era oriunda das ideias, já que só elas são evidentes. E, por mais que alguém possa ter uma ideia de violeta quando ambos vemos um malmequer, isso não constitui uma falsidade “porque são somente minhas ideias que medeiam entre o que existe dentro de mim e o que existe fora” (p. 53). A preocupação epistemológica no século XVII é entre “minhas ideias e o mundo”, mas é provável que tenhamos as mesmas ideias em virtude de compartilharmos leis físicas e psíquicas agindo em nossos organismos, embora eles não se preocupem em elucidar esses mecanismos oriundos de Descartes.

Aceitação comum. Se Bennett acusa Locke de complacência, Hacking argumenta que isso não ocorre porque ele não está interessado em uma teoria do significado. Para Locke, palavras significam ideias em uma relação de precedência ou consequência e não dentro de uma teoria do significado. Não se investiga se temos as mesmas ideias quando falamos, mas é suficiente que haja uma “aceitação comum” de seus significados. Aceitação comum não tem que ver com significação, mas com um uso público estabelecido entre os falantes.

Sentido. Hacking explica que Bennett, por ter uma teoria do significado que é uma teoria da aceitação comum, atribui isso a Locke erroneamente[ii]. Como Locke não se interessa por esse ponto, ele só fica mais claro com Frege no século XIX para quem a “aceitação comum” era o sentido (sinn) e o significado a própria referência (bedeutung). Ora, o sentido pode variar bastante, como sabemos. Já a ideia, para Frege, é uma imagem interna e subjetiva. Se a ideia é individual, o sentido do signo pode ser uma propriedade comum de muitos.

Comportamento público. Conforme Hacking, “daqui por diante usarei a frase ‘teoria do significado’ para indicar algo que ao menos inclua uma teoria daquilo que Frege chamou de sentido (sinn) e o que Locke pode ter chamado de aceitação comum” (p. 57). Isso porque teorias do significado lidam com o comportamento público e compartilhado da linguagem e com um estoque comum transmitido ao longo do tempo[iii].

Superação das ideias. Se para Frege nossa comunicação não se explica pelas ideias a ela associadas, a teoria filosófica da comunicação de Locke assumia essa possibilidade por meio dos estímulos físicos. A teoria comunicativa dos modernos era questão física e psicológica. E uma teoria das ideias, isto é, do discurso mental que tinha como interface a ideia mediando o ego cartesiano e a realidade. Depois, o discurso mental foi substituído pelo público e as ideias se tornaram ininteligíveis, porém cada qual a seu jeito, importam para entender como a linguagem interessa à filosofia.



[i] Fichamento do quinto capítulo de Por que a linguagem interessa à filosofia? São Paulo: Editora Unesp, 1999. Ian Hacking.

[ii] Aqui não foi possível esgotar a argumentação lógica, porém o intuito é mais de uma visão geral.

[iii] Ocorre que a teoria do significado de Frege surge em um contexto de efervescência do significado com usos em múltiplas áreas por Stallo, Mach, Weber e Freud. Mas Hacking a usa especificamente no ramo da filosofia. 

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