domingo, 7 de janeiro de 2024

O etnocentrismo de Rorty

Criticando a filosofia moderna, Rorty abre espaço para um outro tipo de conhecimento [i]

Rorty defendeu o materialismo eliminativo, um tipo de teoria da identidade mente e corpo que questiona a tese da impossibilidade de corrigir as representações mentais, já que teríamos um acesso privilegiado a elas e não conseguiríamos revê-las. Evoluindo seu pensamento, depois ele fez críticas as teorias da verdade como coerência e como correspondência, solapando a ideia de um mundo independente da mente e superando o debate entre idealismo e realismo; ele se volta contra uma filosofia fundante centrada na epistemologia.

Para Rorty, no projeto filosófico moderno a epistemologia era baseada em uma metáfora do “olho da mente” que representa o mundo exterior. Conhecimentos a priori se originam na filosofia da “mente como espelho” e que pode ser estudada a priori, polindo-se esse espelho. Sem essa metáfora, não há análise fenomenológica ou análise lógica da linguagem, já que, mesmo Frege, transformou problemas de ideias em problemas de linguagem, porém manteve o a priori e o empírico. Nessa visão, a linguagem se apega ao mundo do mesmo modo que o conhecimento se apegava ao mundo, para Descartes.

Sellars, com o “mito do dado”, e Quine refutando a “distinção analítico sintético” contribuem para eliminar problemas canônicos da filosofia, em um trabalho de terapia[ii] filosófica ao modo de Wittgenstein[iii], do que tentar resolvê-los teoricamente (i.e., são problemas mal colocados, conforme fala Plastino). Os problemas filosóficos são trazidos historicamente dentro de um vocabulário que deve ser questionado. Mesmo a filosofia analítica ainda tenta dirimir “desafios filosóficos”, mas ela não é o melhor estilo, apesar de útil. É preciso enxergar historicamente se não quisermos cair no platonismo.

A filosofia deve superar o projeto de descobrir a Verdade ou agir segundo a Razão buscando uma autotransformação e aquisição de novos vocabulários, deixando de lado o projeto epistemológico e a filosofia sistemática. Apesar da virada linguística, a filosofia moderna ainda assombra a filosofia analítica. Quine contribui com a visão de Rorty, por exemplo, ao abandonar a ideia de significado como determinando a referência, ideia essa que torna proposições verdadeiras independente do que ocorra, como os enunciados analíticos que são verdadeiros apenas em virtude do significado de seus termos. Sellars puxa para a noção de conceito que nós temos e que usamos em contextos, ou seja, perceber algo já requer o conceito: primeiro tem-se o conceito de verde para depois ter a consciência de coisas verdes.

Daí que Rorty vai tomar a noção de justificação como uma questão de prática social, ter o conceito e saber usar em uma prática social para que seja conhecimento e não a “relação entre palavra e objeto”. Justificamos na conversação, criticando e tratando objeções. Ele rompe a relação, supostamente verdadeira, entre a crença e o fato, e a traz para os jogos de linguagem. A epistemologia se dá pelo diálogo, por um vocabulário contingente e não por representações fiéis da realidade. É o chamado behaviorismo epistemológico, que não transcende a prática e se opõe ao objetivismo de Putnam.

Mas como usamos as palavras e formamos crenças? Temos que descrever o modo como as formamos, ao estilo de Kuhn, em períodos, crises, paradigmas e vocabulários que se sucedem. Mais do que a experiência, é a prática que desempenha papel central no conhecimento.  Davidson também contribui com a visão de Rorty, questionando o relativismo conceitual (e cognitivo), modos de organizar a experiência, e com esquemas conceituais apartados. Ora, sempre é possível haver uma tradução entre duas linguagens, ele se apega à interpretação radical já que a maioria de nossas crenças (e a dos outros) devem ser verdadeiras.

Critica-se o ceticismo radical, pois a linguagem é compreensível e compartilhada. O dogma esquema – conteúdo[iv] (mundo) provoca o relativismo, mas temos contato com os objetos não mediado. Rorty critica a noção de verdade, baseado em Quine, e procura eliminar o predicado “é verdadeiro” que se aplica à expressão “A neve é branca” é verdadeira sse a neve é branca. Também distinguir verdade e justificação: supor que p é verdadeira é supor que  p, sem justificação. Não se pode dizer verdadeiro para mim ou na minha cultura (noção absoluta), mas se pode dizer justificado para mim ou na minha cultura (noção relativa) – confusão feita por James e pragmatistas.  A justificação é um critério para uma proposição ser verdadeira e não uma definição de verdade. Assim, não há crenças indubitáveis, visão falibilista. Justificar depende de cultura e jogo de linguagem.

Estamos no campo do ironismo liberal defendido por Rorty, que tem como características o nominalismo, que se atem ao particular, o historicismo, já que as crenças são contingentes e visão críticas sobre as visões de mundo e vocabulários. Qualquer vocabulário deixa dúvidas e estão aquém da verdade, podem mudar e não evoluem para algo melhor. Entretanto, isso não leva a um relativismo cultural, que iguala perspectivas morais, pois sempre há algo a escolher. Não chegaremos a crenças indubitáveis, como queriam Sócrates e Platão, crenças morais imóveis, mas o pragmatismo que vê a história sabe que isso se dará por um acordo intersubjetivo. Escolher um esquema conceitual não significa atingir um ponto arquimediano fora do tempo e do espaço, absoluto, já que a própria racionalidade evolui e não há sistema neutro e universal. Respeitam-se posições que, de antagônicas, podem ser incomensuráveis (relativismo x absolutismo) tencionando fundamentar os pontos de vista e concepções de mundo que mudam.

De acordo com Plastino, o ironismo está atrelado ao etnocentrismo, que “funda” o conhecimento a certas práticas sociais e período histórico. Uma proposição é garantida em solidariedade com as outras pessoas da sociedade dentro de uma visão de mundo, já que não existe exílio cósmico. Por fim, Plastino traz a visão política de Rorty sobre a democracia liberal, garantidora de direitos e liberdades e que não requer uma concepção filosófica. A prática social não se funda em uma essência da natureza humana ou da razão, mas é pela solidariedade, vendo as diferenças (religião, raça) como menos importantes que as semelhanças (dor, sofrimento). Importa a lealdade para com os outros mais do que se ater a uma posição filosófica, criticando uma filosofia ou moral fundantes e acadêmicas.

Há que substituir o discurso da objetividade pelo da solidariedade porque Rorty, como Dewey, entende que a dor alheia nos toca levando em conta necessidade e desejo. A democracia liberal é legitimada pela construção human por um sentimento de solidariedade e compromisso social.



[i] Fichamento UNIVESP https://www.youtube.com/playlist?list=PLxI8Can9yAHcC9hEv4oAnMT5GI1zGRW1_  Empirismo e Pragmatismo Contemporâneos - O etnocentrismo de Rorty. Prof. Caetano Plastino.

[ii] Conforme https://pt.wikipedia.org/wiki/Terapia: Terapia ou terapêutica significa o tratamento para uma determinada doença.

[iii] Falaremos disso quando tratarmos do livro “Linguagem, conhecimento e formas de vida em Wittgenstein”, de Valério Hillesheim.

[iv] Diversos conteudos do mundo e diversos esquemas conceituais intraduzíveis entre si. 

4 comentários:

  1. Para Rorty baseamos nossas crenças mais em justificação do que na verdade, parece ser mais importante convencer a audiência do se ater à verdade. Os projetos acabam vindo antes dos princípios. Filosofia Pop #035

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  2. Mudar uma crença depende de resultados práticos muito mais que argumentos verdadeiros

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  3. Ao contrário, achamos que o nosso projeto é o verdadeiro e mesmo que não esteja funcionando não temos habilidade para mudar

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  4. A filosofia muitas vezes age dessa forma, pregando uma verdade universal distante da aplicabilidade

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