A proposta externista de Davidson, ao tentar refutar o ceticismo, passa do realismo ao idealismo[i]
Introdução. Smith aborda questões epistemológicas contemporâneas e traz para debate a proposta externista de Davidson que permitiria uma refutação ao ceticismo. É uma forma de teoria moderada da coerência que, tratando o conjunto de crenças dependentes umas das outras, faz com que dificilmente elas sejam falsas sobre o mundo real, ou seja as crenças majoritariamente corretas.
O pressuposto do internismo e as vantagens de recusá-lo. De acordo com Smith, Davidson pressupõe que o internismo, na medida em que baseia os pensamentos em crenças que não se vinculam ao exterior, como “Amanhã será um dia ensolarado”, não evita que sejam falsas. Assim, separa crenças de verdades marcando a diferença do que pode ser verdadeiro com o que de fato é.
Ao separar o domínio interior da mente do exterior, Davidson argumenta que o internismo abre as portas para o ceticismo, já que nossos pensamentos poderiam ser como são e o mundo completamente diferente, levando o epistemólogo a ter que enfrentar o desafio do cérebro num balde (ou cuba), conforme argumenta Smith.
Além disso, com a separação entre mente e mundo apareceriam entidades de ligação entre eles, chamados intermediários epistêmicos por meio dos quais o mundo é representado, porém eles não trazem garantias de que são como o mundo é. Uma proposta verificacionista como a de Quine, ao passo que se dá pelos nossos estímulos sensoriais, não assegura que o mundo não possa ser algo diferente. Smith sublinha que podem haver intermediários causais, mas uma tal terminação nervosa, por exemplo, não tem valor epistêmico.
Dessa forma, rejeitando o internismo semântico, há ganhos para a teoria do conhecimento que não precisa tratar dos problemas que ele levanta, como quando o ceticismo questiona o mundo exterior, já que o externismo está atrelado causalmente ao mundo. E, também, pelo prisma do externismo deixa de fazer sentido a pergunta cética por outras mentes e Davidson se associa a Wittgenstein ao tratar da linguagem como algo social e que pode ser interpretado ou conhecido pelos outros.
A versão davidsoniana do argumento transcendental. A refutação ao ceticismo por parte de Davidson se vale de três argumentos e passa pelo esquema da triangulação[ii]. Smith esclarece que o argumento de Davidson contra o ceticismo se encaixa numa família de argumentos transcendentais (Kant, Strawson e Putnam são outros casos), mas fortemente realista e anti representacionalista. Em um primeiro momento, Davidson estabelece que o conjunto de crenças tem natureza verídica, contrariando a hipótese cética de que as crenças poderiam ser falsas. Mas isso se dá do ponto de vista do intérprete que atribui crenças ao falante. Smith exemplifica: quando o falante diz “gavagai” na presença de um coelho, o intérprete atribui a ele a crença de que gavagai significa coelho. Ou seja, crença e significado estão relacionados e, se são interpretados corretamente, temos que a maioria das frases do falante são verdadeiras, de acordo com o intérprete.
Ocorre que, nesse caso, ficamos a mercê da opinião do intérprete e não de uma verdade objetiva[iii]. E, se é verdade que as crenças do intérprete são verdadeiras, então as do falante também o são. Mas o argumento carece de explicar como as crenças do intérprete são verdadeiras e então Davidson lança mão de um segundo momento do argumento, com a ficção do intérprete onisciente cujas crenças sobre o mundo são verdadeiras e retira-se o condicional, assegurando a validade objetiva das crenças do intérprete.
De posse desse passo adicional, Smith enfatiza que o intérprete onisciente é uma hipótese, todavia, não um fato. Não obstante, apesar de Davidson reconhecer a fraqueza do argumento[iv] insiste na sua teoria a despeito dele, e Smith invoca o terceiro passo da argumentação e que ele considera mais importante, a relação causal entre o mundo e nossas crenças. Como o cético global[v] supunha um intermediário epistêmico entre crença e objeto da crença, ali se instalava a dúvida mas, uma vez que Davidson postula que os objetos de uma crença são a causa dessa crença, há um caminho para refutar o ceticismo. Conforme Smith: “Sendo o conteúdo da crença determinado pelo próprio objeto que causa a crença, a crença será sempre verídica. Uma vez que o conteúdo da crença é precisamente o próprio mundo que a causa, não há como o conteúdo ser falso” (p. 129). E voltamos à questão do internismo e do externismo.
Exame da solução de Davidson. Para Smith, é crucial saber de que maneira a causa determina o significado de nossos enunciados. Será que a relação causal determina o significado e o conteúdo independentemente dos faltantes? Parece que seria possível assegurar a verdade da crença identificando o objeto com a causa da crença e removendo o hiato mente mundo, conforme começa analisar Smith. Mas ele entende que uma mera causalidade sonora não implica significado, a menos que haja por parte do falante essa aceitação durante a comunicação. Por outro lado, se não conhecemos a causa, haveria o ceticismo sobre o conteúdo, isto é, mesmo que a crença fosse verdadeira não saberíamos qual a sua causa real. Haveria o ceticismo de saber sobre o que estamos pensando.
Entretanto, Smith reconhece que, para Davidson, temos participação na constituição do significado. Para além do objeto que causa a crença não só no falante, mas também no intérprete, há uma intervenção humana na comunicação que faz com que a causalidade possa determinar o conteúdo, quando há compartilhamento de conceitos, como os dos objetos e do mundo e seus eventos que independem dos nossos pensamentos.
Smith também pontua que Davidson discorda de que não conheçamos os conteúdos das crenças. Assim ele difere de Putnam, por exemplo, quando postula que é a estrutura química da água que determina nosso pensamento sobre ela, saibamos ou não o que é H2O. Para Davidson trata-se do líquido inodoro que podemos observar, sua causa é conhecida. Mas Smith aí vê um retorno sub-reptício do ceticismo, já que entra na equação o entendimento entre os falantes que pode diferir do mundo como ele é. Nós não nos reportamos mais ao mundo real, mas a um mundo que concebemos e cujas causas supomos que sejam a de nossos pensamentos, crenças e palavras. volta-se a um conhecimento do mundo tal qual nos aparece e o questionamento cético de se ele é tal como nos aparece.
Passos finais. Assim, Davidson, que partiu de uma atitude realista, se aproxima perigosamente do idealismo já que nos distanciamos do mundo e das causas em si mesmas. Smith resume os argumentos 1 e 2 de Davidson como tratando das crenças verdadeiras na opinião do intérprete e o argumento 3 tratando das crenças se referindo a uma realidade não objetiva, mas que aparece para nós, então, de forma idealista, quando a realidade depende de esquemas conceituais.
Smith defende que a tese realista de Davidson só desemboca no idealismo quando ele se preocupa em refutar o cético, quando tenta negar a conclusão dos argumentos céticos. Quando o cético diz que não conhecemos o mundo, mas Davidson insiste que sim, o conhecemos, percebemos que o conhecemos como aparece e não como é, que é justamente a hipótese cética. Smith, por fim, sugere que Davidson se comprometa com uma investigação da natureza diferente da investigação cética, que trata do conhecimento do mundo exterior. Ele deveria se preocupar com uma reorientação epistemológica, substituindo problemas tradicionais por novos e em direção a uma epistemologia empirista e naturalista em oposição a uma resposta transcendental a priori. Ao desenvolver uma reflexão que não se relaciona com a cética, o epistemólogo pode contribuir para o esclarecimento de nossas práticas cognitivas.
Notas.
[i] Fichamento do capítulo - Davidson, Externismo e Ceticismo. SMITH, Plínio Junqueira. O ceticismo sob suspeita. São Paulo: Associação Filosófica Scientiae Studia, 2022. 318 p. (Coleção epistemologia e filosofia analítica).
[ii] Ver https://bit.ly/4s9WLan - Trazendo a segunda pessoa para o debate. O texto examina a centralidade da "segunda pessoa" na filosofia de Donald Davidson, conforme interpretada por Waldomiro J. Silva Filho, estabelecendo a interação dialética como condição sine qua non para a constituição da linguagem e da objetividade. Superando o solipsismo e a dependência de convenções linguísticas prévias, a tese sustenta que o significado emerge de uma triangulação epistêmica entre dois agentes e um objeto comum no ambiente, processo no qual a "interpretação radical" permite a convergência de crenças e a individuação de pensamentos no espaço público. Nesse modelo investigativo, a comunicação transcende a mera transmissão de informações para se tornar um processo de justificação epistêmica, em que o interlocutor é reconhecido como um sujeito intencional e a distinção entre crenças subjetivas e o valor de verdade ("o que é o caso") é estabelecida através do ajuste dialético entre os falantes - resumo Gemini. Entra também o Princípio da Caridade que ainda não tratamos.
[iv] Assim como no Homem do Pântano. Conforme Gemini (em 24/12/2025), esse experimento mental (Swampman), proposto por Donald Davidson em 1987, argumenta que a existência de estados mentais e significados depende da história causal do indivíduo. Davidson imagina que um raio o atinge em um pântano, desintegrando-o, enquanto simultaneamente organiza moléculas próximas em uma réplica física exata sua. Embora o Homem do Pântano se comporte e reaja de forma idêntica a Davidson, o autor defende que essa réplica não possuiria pensamentos ou linguagem genuínos no início, pois seus estados internos careceriam das conexões históricas e causais com o mundo (objetos e pessoas) que conferem conteúdo às crenças e palavras. A referência é o ensaio "Knowing One’s Own Mind" (1987) e traz como pontos chave: 1.) Externalismo Histórico: A mente não está apenas "dentro da cabeça"; ela depende de como interagimos com o ambiente ao longo do tempo e 2.) Identidade Física vs. Mental: Ter o mesmo cérebro (átomo por átomo) não garante ter os mesmos pensamentos se a origem for puramente acidental.
[v] Conforme Gemini (em 24/12/2025), o ceticismo global (ou ceticismo radical) é uma posição filosófica que defende que é impossível termos conhecimento sobre qualquer coisa ou que não temos justificativa para acreditar que o mundo exterior existe da forma como o percebemos. Diferente do ceticismo local (que questiona áreas específicas, como a religião ou a ética), o ceticismo global ataca a própria base da nossa capacidade de conhecer a realidade. O ceticismo global é frequentemente visto como um "desafio intelectual" para testar a força das nossas teorias do conhecimento (epistemologia).
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