Pretende mostrar uma abordagem de como se constrói uma regra[i]
Gostaríamos de tratar da questão das
regras sob um enfoque wittgensteiniano[ii], na medida em que toma
uma regra como algo indeterminado. Ora, regra é “aquilo que regula, dirige,
rege”[iii]. Nesse sentido, regra é uma
metadefinição, pois uma regra precisa ser explicitada. Uma regra é uma
generalização e, nesse sentido, praticamente impossível de atender todos os
casos e sujeita a interpretação, inicialmente.
Dizer que fulano entende uma regra é dizer
que fulano aplica a regra satisfatoriamente até aquele momento, mas não que ele
vai sempre aplicar a regra de acordo com o que cicrano poderia tolerar. É que
fulano pode ter entendido uma regra (regra específica um: RE1) de um modo RF
que, nos casos aplicados até o momento, converge com o que entende cicrano, pelo
modo RC. Mas nada impede que haja alguma aplicação de RE1 por uma regra RF que seja
incongruente com RC.
Fica a questão de saber se RE1 pode ser
igual a RF ou RC ou se RE1 é uma utopia. E isso só se dá na prática. Porque não
se pode saber o que queria fulano na aplicação número 127 da regra, isto é,
RF127 pode não coadunar com uma interpretação RCx de cicrano. Mas, até a aplicação
RF126, RF era igual a RE1 e igual a RC (x – 1), não se podendo determinar ao
certo esse x, o que inviabilizaria totalmente qualquer comunicação baseada em
regras interpretadas por fulano ou cicrano. Se esse é o caso, essa
possibilidade deve ser rejeitada.
Antes de mais nada, por que isso ocorre?
Sem dúvida, porque cada palavra ou sentença que compõe a regra pode ter mais de
um significado. Se o significado não está atrelado a algo mostrável, que se
possa dizer: “o significado dessa regra é aquilo”, tem-se esse problema. Uma
palavra não tem ligação lógica com seu significado[iv].
Isso posto, a única garantia é a linguagem
comum, partilhada, e não um suposto entendimento de regras, ainda mais regras
ancoradas em um pensamento interno, em uma linguagem privada. Pois por ela, nem
mesmo o próprio sujeito teria um critério que determinasse o uso da regra, já
que uma identidade interna seria duvidosa. Como ter certeza de que a dor de
barriga que sinto agora é exatamente igual à que senti semana passada? Cai por
terra o papel normativo de uma regra e condena-se o uso de qualquer linguagem,
mas ainda assim continuamos nos comunicando[v].
Estamos no campo do suposto paradoxo do cético, mas ele não abandona a prática
porque sabe que a linguagem é algo que funciona. Antes de haver fatos que
legitimem as intenções há condições para uso da linguagem, ou seja, mantém-se o
problema cético e soluciona-se a questão de outra forma[vi]. Se não há condição de
verdade para a regra (ceticismo), não há um referencial interno (estado psicológico,
comportamento), há o referencial da comunidade. A via de normatividade da regra
passa para o uso público da linguagem, quando a regra é usada reiterada vezes em
um acordo, no jogo de linguagem e agindo em acordo com a regra. Assim o
julgamento de aderência sai do privado para o público, vai para um padrão de
uso[vii].
Mas o fato de eu não saber se a dor que
sinto é a mesma faz com que possivelmente eu não tenha nenhum tipo de parâmetro
de como proceder. Mas temos porque sabemos que uma dor em determinada região
até uma escala presumivelmente suportável irá passar ou tomamos o remédio “X”
que já tomamos outra vez para sua cura. A causa específica fica por conta do
médico. Ainda assim, não há critério garantidor, a não ser experiências
passadas que se valem da memória.
Aqui surge um ponto que Nara traz da
análise de Kripke que é fundamental: concluímos que uma regra privada não tem
critério porque ele seria um critério de si mesmo e, nesse caso, sempre
aderente, mas não poderia ocorrer o mesmo com uma regra pública? A questão
cética volta porque não haveria critérios finitos para estabelecimento da regra
e ela poderia ser interpretada de diversas formas. O problema é que queremos
justificar o uso de uma regra pelo próprio uso da regra. Mas é exatamente
porque uma regra não é algo separado e sim dependente do uso que se faz
necessário recorrer ao acordo público.
Fica a questão de se uma regra deve ter um
referencial, do ponto de vista cético, ou se basta que seja algo do uso prático,
contingente.
Entretanto, o ponto de vista de
Wittgenstein não é o de aderir a teses fundantes, mas mostrar que a linguagem é
um jogo e que requer treino para o entendimento. Não se comprova algo de
maneira irredutível, mas dependemos de testes recorrentes e situações que
tendam para um uso comum e esse uso é a regra, dentro de cada contexto. Mesmo a
palavra regra pode ter um uso diferente nos vários jogos de linguagem, cabendo
explicitação do seu significado em cada um deles. Regra, então, não é um
conceito, já que não pode ter um limite estabelecido, mas uma função
normativa naquele jogo em que ela se caracteriza, conforme Nara. E que permite
justificar o uso de determinadas palavras em um jogo, recorrendo a frequência
de uso e generalização. E essa justificação é contingente, porém, uma vez
estabelecida a regra, não haverá margem para interpretação.
[i] Seguimos na primeira leitura de:
FIGUEIREDO, N. M. Estudo sobre regras e linguagem privada. A divergência de
interpretações sobre a noção de regra nas Investigações Filosóficas. 2009.
Dissertação FFLCH/USP.
[ii] Kripkenstein.
[iii] Oxford Languages
[iv] Nara, pg. 49.
[v] Idem, pg. 51
[vi] Conforme Nara, sobre Kripke,
não que ele faça uma exegese, mas comentários.
[vii] Interessante a colocação de Nara de quando Wittgenstein nega a linguagem privada ele nega o uso de seguir uma regra privadamente.
Regra = significado?
ResponderExcluir"Essas conclusões, segundo Baker e Hacker, são o que Kripke chama de nova forma de ceticismo. Qualquer reflexão do sujeito que pratica a ação pretendendo estar de acordo com a regra manterá a impossibilidade de determinação do acordo ou conflito com a regra, uma vez que parecer seguir a regra e, de fato, segui-la são indistinguíveis tanto do ponto de vista subjetivo quanto do ponto de vista objetivo. Do ponto de vista subjetivo, porque a regra não pode ser determinada privadamente; do ponto de vista objetivo, porque sempre pode haver uma nova interpretação." (p. 102)
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