Argumentação de Kripke contra o descritivismo: um
caminho para a volta do referencialismo em nova roupagem[i]
Se as teorias descritivistas de nomes
(clássica, agregados), pelas quais o significado de um nome é o significado da descrição
(particular, complexa) associada ao nome, são mais completas que o
referencialismo, já que explicam também a referência (objeto que a descrição aponta),
elas também trazem objeções de Kripke que são abordadas por Sagid, conforme
sinapses abaixo. As duas primeiras colocam em dúvida a teoria descritivista do
significado (a mais importante sendo a segunda, segundo Sagid) e, a última, a
teoria descritivista da referência.
Argumento modal.
Segundo esse argumento, nomes não são equivalentes a descrições pois se
comportam de maneira diferente em contextos modais, que são aqueles que
envolvem possibilidade e necessidade. Supondo o NP “Aristóteles” (A) e a DD “o
fundador da lógica formal” (oflf) temos de 1.) "Se Aristóteles existe, então
Aristóteles é Aristóteles", algo que não falha, a derivação X.) "Se Aristóteles
existe, então Aristóteles é _______". Atribuindo a DD, postula-se 2.) "Se
Aristóteles existe, então Aristóteles é oflf", algo que não é necessariamente
verdadeiro, mas que, para o descritivismo clássico, teria o mesmo significado (1
e 2). Entretanto, Aristóteles poderia ter existido e não ter fundado a lógica
formal.
Ora, se 1.) é necessariamente verdadeiro e
2.) é uma verdade contingente, então não podem ter o mesmo significado. 1.) e 2.)
tem a mesma estrutura, diferindo pela última ocorrência de Aristóteles que, ao
ser substituida pela descrição definida, acarreta a diferença de significado.
Por isso, o nome próprio não é equivalente à descrição definida dele e, não só, mas por
nenhuma descrição e o argumento se generaliza[ii].
Mundos possíveis.
O argumento modal de Kripke se vale do conceito moderno de “mundo possível”[iii][iv], isto é, do modo como o
universo é, por exemplo, o fato de que “este mundo é tal que eu sou computeiro”
mas, o mundo poderia ser diferente e eu poderia ser um filósofo. Se há muitos
modos, cada modo é um mundo possível, assim como esse mundo, agora, é um mundo
possível[v]. Daí que é possível
algo que é o caso em pelo menos um mundo possível e é necessário
algo que é o caso em todos os mundos possíveis. Esse conceito pressupõe
coisas do tipo “Gosto de filosofia em pelo menos um mundo possível”, mas “é
necessário que 2 + 2 = 4”, algo que vale em todos os mundos possíveis.
Designador rígido.
Retomemos 1.) "Se A existe, então A é A" e 2.) "Se A existe, então A é oflf". Pleiteia-se
que 1.) é necessário, já que é verdadeiro em todos os mundos possíveis e 2.)
não é necessário já que é verdadeiro em alguns mundos possíveis, isto é,
contingentemente verdadeiro. Quer dizer, o valor de verdade de 1.) é constante
de mundo para mundo, do que Kripke tira, segundo Sagid, que, como o referente
do NP é constante, ele é um designador rígido, e como o referente da DD varia,
ela é um designador flácido.
3.) “O flf é um homem” é verdade no nosso
mundo, mas em outro poderia ser uma mulher. Como o referente da descrição
definida se altera de mundo para mundo, então o valor de verdade de 3.) varia.
Já 4.) “Aristóteles é um homem” marca o referente em todos os mundos, já que
podemos verificar se Aristóteles é um homem, mas não precisamos procurar o
referente. Embora Aristóteles pudesse ter tido outro nome, uma vez que A nesse
mundo atual seria A em todos os mundos, já que A seleciona sempre o mesmo
indivíduo. Ao falarmos de A, sempre falamos de Aristóteles.
Sagid define o designador rígido como “Um
termo T é rígido se, e somente se, designa o mesmo indivíduo em todos os mundos
possíveis onde ele existe”. Já o designador flácido é assim definido: “Um termo
T é flácido se, e somente se, não é rígido.”. Então, o argumento modal versa
que nomes próprios são designadores rígidos, mas as descrições definidas
associadas a eles normalmente não são designadores rígidos. E os designadores
rígidos não têm o mesmo significado que os designadores não rígidos. Portanto,
nomes próprios e designações definidas se comportam de maneira diferente em
contextos modais e, por isso, seus significados são diferentes.
Argumento epistemológico.
Assim como o argumento modal, o argumento epistemológico procura refutar a
teoria descritivista do significado dos nomes próprios. Para o argumento
epistemológico, nomes e descrições não são equivalentes, isto é, não tem o
mesmo significado porque se comportam de maneira diferente em contextos
epistêmicos, que são aqueles que envolvem crença e conhecimento.
Novamente, dados o NP A e a DD oflf temos,
pelo descritivismo, que são equivalentes. Podemos generalizar 5.) “João sabe
que A é A” em Y.) “João sabe que A é _______” e derivar 6.) “João sabe que A é
oflf”. Pelo princípio da composicionalidade, como sabemos, o significado de uma
frase é dado pela sua estrutura e o significado das partes. Ora, 5.) e 6.) tem
a mesma estrutura, mas suas partes não parecem ter o mesmo significado já que
5.) é um conhecimento trivial (a priori e, portanto, verdadeiro) e 6.) poderia
ser falso, o que faz com que o NP e a DD não tenham o mesmo significado.
Como no caso do argumento modal, aqui
também podemos generalizar e, para qualquer descrição definida poder-se-ia dar o
caso e, por conseguinte, o significado de A não ser dado por nenhuma descrição
definida associada a ele. O mesmo vale
para o complexo de descrições pois também pode dar-se o caso de o ouvinte não
saber das descrições relevantes, posto que é uma crença difícil de ser
atribuída a alguém.
Há o truque de associar 5.) e 6.) formando 7.) “João sabe que o oflf é oflf”, isto é, substituindo todas as ocorrências do NP e aí seria também uma sentença trivial, como 5.). Assim sendo, 7.) não parece ter o mesmo significado de 6.), isto é, 7.) é V e 6.) é F. Também poderia ser argumentado que a objeção é válida, mas não quando é aquela descrição que fixa o nome. Porém se é o caso exatamente da descrição que associa o nome, então Russell diria que são equivalentes (NP ~ DD)[vi].
Mas, de fato, pode dar-se o caso de serem
equivalentes. Porém, Sagid ressalta outro problema, o de falantes que podem
significar coisas diferentes quando significam um nome, que é o caso de “A é
legal” significando “O flf é legal” ou “O am é legal” (am abreviando o autor da
metafísica), dependendo do falante, algo que a teoria dos agregados poderia
tentar resolver com a descrição complexa da comunidade, mas que ainda assim
poderia diferir da de um falante qualquer, como já vimos.[vii]
Argumento semântico[viii].
Já o argumento semântico, por seu turno, tocará na referência alegando que é
verdade que o referente é dado pela descrição, mas não é verdade que o
significado do nome é dado pelo significado da descrição. Dados o NP A e a DD
oflf temos que o referente do NP é dado pelo referente da DD já que é ela que o
fixa. Se a DD não tiver referente ou tiver mais que um referente, o NP falha em
se referir, mas se houver um e apenas um objeto que possui a propriedade indicada,
então esse indivíduo é o referente.
Fato individuador.
Ora, se A tem referente é porque se sabe que ele é oflf, há uma crença
verdadeira, isto é, se há referente, o usuário do NP sabe que há referente. Por
conseguinte, segundo Strawson, tem-se conhecimento de um fato individuador
acerca de A: o fato de ser oflf. Sabe-se que A é o único indivíduo a possuir a
propriedade de ter sido oflf. Esse fato singulariza, diferencia A do resto dos
indivíduos. E, continua Sagid, o conhecimento de um fato individuador é um
conhecimento discriminatório, que permite identificar o indivíduo.
O sucesso em se referir provém do
conhecimento de um fato individuador que é considerado uma condição de
necessária, embora possam haver outros conhecimentos discriminatórios, conforme
sugerido por Strawson, como a percepção. Entretanto, para o descritivismo, são
as descrições definidas que permitem o conhecimento de fatos individuadores. O
flf é algo só de A, mas ele primeiro seleciona o indivíduo e depois usa o nome.
Primeiro a DD e depois o NP.
Falante ignorante.
O argumento semântico pressupõe o falante ignorante, que não conhece um fato individuador
acerca de algo e se enuncia como:
(P1) Se o descritivismo está correto,
então não existem casos nos quais um falante ignorante acerca do referente de
um nome consegue se referir a algo através do nome.
(P2) Todavia, existem casos nos quais
falantes ignorantes têm sucesso em se referir a algo através de nomes.
(C) Logo, o descritivismo é falso.
Se P1 é o requisito epistêmico, P2 é
verdadeiro?
A argumentação de Kripke vai no seguinte sentido,
tematizado por Sagid e por nós apropriado, como todo o resto das postagens do
curso do IF: Joãozinho vai a aula e escuta do professor “Newton foi mestre de
Platão”. Chegando em casa, Joãozinho diz: “Pai, o Newton foi m de P” e aquele
responde: “Não, não foi”. Ora, o exemplo
mostra que, mesmo dizendo uma falsidade sobre Newton, ele teve sucesso em se
referir, mesmo sem conhecer um fato individuador. Agora vejamos o exemplo de
Donnellan: os pais estão com uma criança em uma festa e ela dorme. Enquanto
isso, os pais encontram Tom e ela abre o olho, diz “oi” e dorme novamente. No
outro dia, a criança fala: “Tom é legal”. De novo, ela não conhece um fato individuador
e até poderia ter mais de um Tom na festa, mas ela se referiu a Tom.
Entretanto, Sagid aponta para uma
supervalorização do argumento, como que somente a pergunta “Quem é Aristóteles?”
(que uma criança faz a despeito da conversa de seus pais) já serviria para argumentar
que foi feita a referência, mesmo sem que nada se saiba sobre Aristóteles.
Então, se a objeção é importante, deve ser usada sem exageros e indeterminações,
como pensar que o argumento semântico fosse capaz de pleitear uma tese mais
forte e mostrar que falantes completamente ignorantes são capazes de se
referir. Ocorre que a pergunta “Quem foi Aristóteles?” pode mostrar que o falante
pode não ser tão ignorante pois há o fato individuador que é o fato de que A é
a pessoa sobre quem os pais estão falando. E o fato de ouvirmos a frase “Maria
é legal” não sugere que conhecemos Maria e que se pode defender a tese forte,
pois se nos perguntassem “Quem é Maria?”, diríamos “Não sei” e ficaria difícil,
depois disso, afirmar que ela é legal, o que corrobora o insucesso referencial.
Dito isto, o quadro atual é:
1.) teoria
referencialista: o significado é a referência – levanta 3 enigmas que podem ser
solucionados pela:
2.) teoria
descritivista (clássica ou agregados): significado do nome é significado da descrição
e referência do nome é referência da descrição – levanta as 3 objeções que
descrevemos que poderiam ser resolvidas pela:
3.) teoria
causal da referência, que é uma teoria da referência que se soma ao
referencialismo, que é uma teoria referencialista do significado.
[i] Recortes feitos das aulas 14, 15 e
16 do professor Sagid Salles disponíveis no Youtube. Curso IF - Filosofia da
Linguagem: https://www.youtube.com/playlist?list=PLb6DzdXIOv4EtJpTp1G9kThcOi_DATFyS.
[ii] O fato de Aristóteles poder ter
morrido meses depois de nascer, o que o deixaria despido de descrições, não me
soa convincente, senão que de muito mal gosto.
[iv] Ref. de Sagid: https://criticanarede.com/fil_essencialismo.html: Essencialismo Naturalizado:
Aspectos da Metafísica da Modalidade
[v] Há uma extrapolação
metafísico-realista do argumento que versa que cada mundo possível existe na
realidade. Sobre isso, ver episódio “#12 - RICARDO SANTOS - SAUL KRIPKE: (O
NOMEAR E A NECESSIDADE)”: https://www.youtube.com/watch?v=Mk5toR26ESE&ab_channel=FILOSOFIASer%26Pensar
[vi] Mas deveria ser conhecida por todos?
[vii] Sagid ainda aponta para um
descritivismo da referência, de Frank Jackson, que podemos investigar
posteriormente.
[viii] Atribuído a Kripke e Donnellan, de
acordo com Sagid.
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