terça-feira, 28 de julho de 2020

Guia introdutório ao pensamento kantiano[i]

Kant vive de 1724 a 1804 em Königsberg, na Prússia[ii] sem jamais se afastar de casa por mais de um dia, segundo sua fama de hábitos regulares. A filosofia kantiana pode ser resumida na tentativa de sintetizar racionalismo e empirismo e sistematização da ética da consciência individual. Sua principal obra, a Crítica da razão pura[iii] (1781) o coloca como maior filósofo moderno, mas não podemos deixar em segundo plano a Crítica da razão prática (precedida pelos Fundamentos) e Crítica da faculdade de julgar.

Segundo Kant, foi Hume que o despertou de seu sono dogmático, ou seja, do racionalismo dogmático. Em sua época, havia profundas divergências entre racionalismo e empirismo e parecia não haver uma base sólida para a filosofia. Mais precisamente, Kant se perguntou: “Pode a metafísica existir como ciência?”. E, por metafísica, tratava-se de entender o universo em sua totalidade. Na verdade, Kant entendia que a ciência e a metafísica partiam de dados (coisas, ideias abstratas) que davam origem a juízos, ou seja, usavam métodos semelhantes.

De forma a clarificar o que se segue, vamos definir dois pares de termos correlatos muito usados por Kant na Crítica:

· Proposições analíticas: só explicam as palavras, p.ex., uma bola de bilhar é esférica;

· Proposições sintéticas: vão além, p.ex., a bola branca bateu na preta e mudou de direção;

· Conhecimento a priori: fruto somente do raciocínio, independentemente da experiência;

· Conhecimento a posteriori: vem da experiência.

Então, dados esses termos temos, de um lado, o racionalismo proveniente de Descartes:

·         O conhecimento vem da dedução racional e lógica;

·         As ideias inatas são a única fonte segura de conhecimento;

·         Dificuldade em unir a certeza lógica à realidade;

·         Proposições analíticas;

·         Conhecimento a priori.

De outro, o empirismo de Hume:

·         Todo o conhecimento vem da experiência;

·         Não existem ideias inatas;

·         Dificuldade de provar a necessidade lógica de leis da experiência;

·         Proposições sintéticas;

·         Conhecimento a posteriori.

Esse esquema de termos serve para enfatizar as divergências entre as duas escolas e para mostrar que, para Hume, era impossível compatibilizar o empirismo com o racionalismo. Para Kant, ao contrário, era possível haver juízos sintéticos a priori, ou seja, saber a trajetória da bola de bilhar[iv]. Esse conhecimento é a superação do ceticismo de Hume, que ficava preso à experiência sensorial. 

Para Kant o conhecimento era a síntese entre a experiência e os conceitos mostrando, assim, que precisamos dos sentidos e do entendimento. Nós partimos dos dados da experiência que nos são dados em suas formas puras de tempo e espaço e estruturamos a realidade com as categorias do pensamento:

·         Quantidade: Unidade (a bola branca), Pluralidade e Totalidade. 

·         Qualidade: Realidade (tocou a preta), Negação e Limitação. 

·         Relação: Substância, Causalidade (e a desloca) e Comunidade. 

·         Modalidade: Possibilidade, Existência e Necessidade (toda vez).

É a chamada Revolução Copernicana, uma mudança de paradigma proposta por Kant que, ao invés de focalizar o conhecimento somente do mundo, trata de nossas capacidades de conhecimento. Citando a CRP: “Assim, a ordem e regularidade nas aparências, o que chamamos natureza, nós mesmos a introduzimos”.

Porém, o conhecimento se limita aos fenômenos que aparecem e ir além deles para tentar conhecer a coisa em si leva a paradoxos e contradições. Portanto, a coisa em si é incognoscível, mas foi tratada na argumentação metafísica tradicional que versa sobre a alma, a imortalidade, Deus e livre-arbítrio, ultrapassando os limites da razão, que deveria se dar na esfera prática.

Então, se a Crítica da Razão Pura estabelece os limites do conhecimento, a Crítica da Razão Prática, que se segue, abordará a lei moral. Segundo Kant, nossos juízos morais não se fundamentam na bondade ou nos mandamentos da natureza, mas a moralidade é fundamentada no raciocínio, não sobre o certo e o errado em cada situação, mas através do axioma: “Proceda em todas as suas ações de modo que a norma de seu proceder possa tornar-se uma lei universal”.

É o imperativo categórico, ato que obedece à lei racional da moralidade considerado um princípio universal. Mas é uma lei dada por nós mesmos e, nesse sentido, autônoma e livre. É aí que deixamos de ser fenômeno para ser coisa em si, no poder de deliberação, mas que sempre deve ser orientado por pelo dever moral de agir por obrigação. Diferentemente de um imperativo hipotético, que visaria outro objetivo, o imperativo categórico evitaria a legislação em interesse próprio e a mentira, embora tamanho rigor pudesse levar a contra sensos.

Já na terceira crítica é abordado o juízo estético que, embora não objetivamente válido, deveria ser tratado “como se” fosse. Conforme Kant, a arte é “um propósito sem propósito”, mas que permitiria atingir uma razão ou bem maior.



[i]  Principiando em Kant com “Osborne, Richard. Filosofia para principiantes; tradução de Adalgisa Campos da Silva. Rio de Janeiro: Objetiva: 1998.” e “Law, Stephen. Guia Ilustrado Zahar De Filosofia; tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Jorge Zahar Editor: 3.ed.”

[ii]  Era Alemanha, mas foi anexada à União Soviética depois da Segunda Guerra (conforme Wikipédia, em 26 de julho de 2020: https://pt.wikipedia.org/wiki/Kaliningrado).

[iii]  Resumida nos Prolegômenos, para melhor compreensão.

[iv]  Esse ponto refere-se à célebre passagem de Hume que diz, grosseiramente, que se um ET porventura aparecesse de repente em um jogo de bilhar, após uma tacada de alguns dos jogadores, o ET não saberia dizer o que iria se suceder com a bola, por não ter tido uma experiência prévia dessa situação.


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