Uma jornada em busca do terceiro reino[i]
Francisco trabalha uma distinção entre lógico e
psicológico na teoria fregeana, como sendo uma dualidade semântica. Nosso
interesse está em entender como pode haver uma coadunação entre esses dois
campos ou quais limites há entre eles. Para Francisco, a distinção entre lógico
e não-lógico ocorre por meio de uma investigação semântica de sentenças da
linguagem natural[ii].
Mas é como se a psicologia “atrapalhasse” o pensamento
rigoroso e matemático. Há sentenças que, se logicamente contraditórias, ainda
assim tem um sentido como a poética: “um campeão de perda de campeonatos” que
tem uma intenção de provocar uma antítese irônica. É uma asserção da linguagem
natural sem valor de verdade. Ocorre que, para Frege, não é um pensamento
objetivo e pertencente ao mundo exterior, porém uma ideia subjetiva e interior
e que vai variar de acordo com as afinidades individuais permitindo a própria
expressão artística.
Para Frege, segundo o autor, não há psicologismo nas
relações lógicas embora haja uma semântica em sentenças psicológicas expressas
em determinados contextos. O sentido de uma frase é o pensamento que ela
expressa[iii],
mas se ela não tem referência, como na poesia ou lenda, não é verdadeira nem
falsa; a ciência requer referência.
Sentenças da arte poética se utilizam da livre
associação de ideias (não de pensamentos) e seguem preocupações estéticas,
portanto há valor estético e não de verdade. Mas é a linguagem que estrutura
essa fronteira por meio da investigação lógica porque uma investigação
puramente psicológica enfoca conteúdos mentais individuais. A lógica assere
pensamentos: eles têm sentido, comunicam algo, mas ela vai até o ponto em que
eles tenham valor de verdade.
Conforme Francisco, há três momentos, para Frege: primeiro
há o pensar, a apreensão do pensamento, depois há o julgar, o reconhecimento da
verdade do pensamento e por fim há o asserir, a manifestação desse juízo. É dessa
forma que procede a investigação científica e, no segundo passo, quando se reconhece
o valor de verdade, é que podemos fazer asserções. Já as sentenças ficcionais não
têm força assertiva, elas não têm relação com os atos mentais de julgar e
asserir.
São prescrições lógicas que investigam a essência da
verdade, que tem caráter metafísico, sem se ater à psicologia subjacente. Muito
embora, de acordo com Francisco, Frege não negue que mesmo uma sentença
assertiva científica também possa expressar um componente não lógico associado
a seu sentido. No começo da investigação científica, quando estamos no campo
das interrogações, há interferência de processos psíquicos, mas que vão sendo
delimitados pela demonstração formal e, quando se reconhece a verdade daquele
pensamento, então se descartam os processos mentais que foram apreendidos.
Citando Francisco: “Não importa os processos mentais que possibilitam o ato de
pensar, mas, sim, se o que pensamos é verdadeiro ou falso.” É como uma “limpeza
de terreno”, podemos classificar, pois parte-se de um ato de pensar [psíquico]
para se atingir uma demonstração verdadeira que permite julgamento e asserção.
Há interesse psicológico quando raciocinamos sobre
leis naturais porque há processos mentais de apreensão de pensamentos que não
avançaram para os atos de julgamento e asserção[iv]. Francisco cita o uso da
vacina por Louis Pasteur: ele sentiu angústia ao aplicar a vacina canina em uma
criança, havia dúvida, processo psíquico, porque ainda não havia reconhecimento
da verdade. Porém, uma vez concluído o processo investigativo, há uma
sentença que expressa o pensamento com valor lógico independente do mundo
interior dos processos psíquicos[v].
Então, há componentes lógicos e não-lógicos nos
processos mentais envolvidos no procedimento científico, mas a fronteira se dá
quando o processo termina, quando um juízo se manifesta. Há que ter cuidado
para que os processos psicológicos não desviem a ciência da busca do ser
verdadeiro. Por outro lado, a lógica não se debruça sobre o processo mental
subjetivo, porque ele não provoca alteração no valor de verdade de um
pensamento[vi].
Uma vez que se debruçou nos aspectos psicológicos,
Francisco trata agora da mente humana, como um “lugar” com conteúdos como ideias,
que são interiores, e pensamentos, que são exteriores. Encontram-se, na mente
humana, tanto estados perceptivos, psicológicos e subjetivos, quanto os
objetivos e lógicos. Mas é ela que os organiza para que os pensamentos sejam
comunicados pela linguagem, no ato de asserção [verdadeiro[vii]] que se torna público
[novamente]. Francisco defende esse aspecto psíquico[viii] na comunicação humana,
mas ideias podem ser sugeridas, ao passo que os pensamentos são transmitidos.
Citando: “Um pintor, um cavaleiro e um zoólogo provavelmente conectarão ideias
muito diferentes para o nome ‘Bucéfalo’”. Nota-se que há várias ideias e o
“sentido” é apenas indicado porque elas são interiores e não podem ser
comparadas, mas têm afinidades.
Francisco sublinha que Frege não formula o conceito de
mente, já que é do campo psicológico, embora os pensamentos façam parte do
processo mental / psíquico, assim como as ideias – lógico e psicológico estão
lado a lado na mente humana. Contudo, a capacidade mental se divide em ideias,
que são abstrações mentais subjetivas e interiores; componentes não-lógicos,
que são interiores, mas se expressam na linguagem, porém sem valor de verdade; e
a capacidade mental especial, que são pensamentos puros e assertivos usados na
lógica (o terceiro reino).
A partir dessa conceituação, Frege é considerado um antipsicologista
(embora platonista[ix]...),
porém Francisco traz críticas consolidadas por Vassalo, principalmente a
caracterização de Margolis[x] de um antipsicologismo
manco, porque não explica a natureza do terceiro reino. Frege tem teses
antipsicologistas, como a fundamentação dos conceitos matemáticos, a construção
da linguagem lógica e a elaboração de uma teoria do significado que eram
consideradas por Putnam e Margolis componentes dos processos mentais (mundo
interior). Mas Frege vai separar o conteúdo lógico da investigação psicológica
em nossa mente, se os pensamentos são apreendidos do mundo exterior, usamos nossa
capacidade psíquica para realizar operações numéricas, por exemplo (eles não se
anulam). E mesmo em uma sentença pode haver componentes psicológicos e
conteúdos lógicos, mas aí a distinção é feita pela teoria semântica.
Entretanto, a criação psíquica, considerada por Frege
uma imperfeição da linguagem natural, pode ser eliminada por uma linguagem
formal que expressa o pensamento puro (Conceitografia, Begriffsschrift). Assim,
há um mesmo sentido objetivo partilhado (p.ex., "Alfredo não está no local
X no tempo T") embora possa representar diferentes ideias subjetivas (p.ex.,
A imagem mental de Alfredo, ou o sentimento de alívio ou preocupação)[xi]. Se os psicologistas
consideravam que todos esses processos eram mentais e internos, para Frege a
apreensão do pensamento não está relacionada com componentes subjetivos que são
individuais e sugeridos pela linguagem ao mundo exterior, com uma base
psicológica falível.
Conforme citação de Putnam destacada por Francisco, o
significado não pode ser um estado mental particular, tese psicologista, porque
ele é apreendido por várias pessoas, então Frege o considera uma entidade
abstrata [do terceiro reino] que é pública, ainda que apreendê-lo seja um ato
psicológico individual. Assim a sentença “A lua é um satélite natural da terra”
é um pensamento que pode ser apreendido, não criado pela capacidade mental
humana, é reconhecido como verdadeiro [cientificamente]. Mas não se pode
descartar que temos capacidade criadora de processos mentais subjetivos, os da
arte poética, que Putnam parece não ter levado em conta segundo o nosso autor. Cabe
ressaltar a distinção de Frege para os processos mentais: 1.) psicológicos, do
mundo das sensações e sentimentos (Ψ - psi), não-lógicos, entram na linguagem
natural nos processos lógicos (β - beta) e lógicos, capacidade mental especial
de apreensão (λ - lambda).
Haack também foca na oposição entre lógica e processos
mentais ao caracterizar Frege como antipsicologista, já que não depende de como
pensamos individualmente e convencemos alguém, mas de uma lógica que é objetiva
e normativa[xii].
Para terminar, vamos extrair um exercício das últimas
colocações de Francisco. A sentença “A penicilina é um antibiótico” não era um
pensamento de Alexander Fleming (ele mesmo disse que não a inventou, mas a
descobriu), mas um pensamento que ele apreendeu do mundo exterior[xiii]. Ora, nas pesquisas,
ele foi conduzido pela curiosidade que desaparece quando o pensamento é julgado
verdadeiro e acaba provocando mudanças no interior de quem o apreende, embora
permanecendo intocado. Por outro lado, se Fleming tivesse dito: “Impressionante,
a penicilina é um antibiótico”, isto é, sugerindo algo psicológico do seu mundo
interior pela linguagem natural, haveria além do pensamento verdadeiro uma
sugestão psicológica que não é verdadeira nem falsa, mas que pode ser
partilhada porque temos ideias aproximadas[xiv].
Então: (Ψ) a curiosidade de Fleming pertence aos
processos mentais, (λ) processo mental de apreender um pensamento e (β) usar um
acessório subjetivo ou ideia pertencente ao mundo interior. Tais componentes
mentais podem ser distinguidos analisando-se a linguagem: para fazer ciência um
fato deve ser procurado (um objeto, referência), ou seja, há semântica do
sentido; para estudos da alma humana, diálogo cotidiano ou psicologia,
observam-se componentes semânticos de caráter subjetivo.
Para terminar, vamos marcar esse ponto apresentado por
Francisco: ao distinguir entre pensamentos e ideias Frege pode fazer uma
investigação das sentenças da linguagem natural que leva em conta aspectos
lógicos e não-lógicos. Então, se considerado antipsicologista, ele apresenta
uma teoria semântica que se divide em uma categoria lógica e outra psicológica.
Nessa dualidade, Frege também precisa fazer uma análise dos aspectos interiores
para separar os conteúdos, não sem negar que, se os aspectos subjetivos predominam
na criação poética, por exemplo, eles aparecem no início das investigações científicas,
mas devem estar ausentes nas inferências lógicas e nos resultados das pesquisas
científicas.
Originou um short: Terceiro Reino
[i] Conforme Gottlob Frege: os sentidos
lógicos e psicológicos nas sentenças da linguagem natural, https://revistas.usp.br/filosofiaalema/article/view/200089,
de Antonio Marcos Francisco. DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2318-9800.v27i2p.31-50.
Este artigo apresenta como tema principal a teoria semântica de Frege para
sentenças da linguagem natural e dos processos mentais associados à sua
significação. Frege se fundamenta na análise da linguagem para distinguir na
mente humana os elementos lógicos de outros de aspectos psicológicos. Portanto,
nossa investigação visa apresentar nos escritos de Frege a presença de uma
teoria semântica relacionada ao encanto estético da arte poética e outra lógica
ou associada às investigações científicas.
[ii] De acordo com o dicionário do
Google (Oxford Global Languages), lógico: cujo raciocínio é rigoroso,
coerente, acertado e psicológico: pertencente à psique ou aos fenômenos
mentais ou emocionais.
[iii] Marcando esse ponto, grifo 1.
[iv] Nota-se Sellars aqui: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2025/08/estruturas-perceptivas-e-inferenciais.html.
Estruturas perceptivas e inferenciais.
[v] Marcando esse ponto, grifo 2.
[vi] Marcando esse ponto, grifo 3.
[vii] Interessante marcamos esse ponto de
que o que se torna público, as asserções, são verdadeiras.
[viii] De certa forma se contrapondo à
visão de Haack, que ele cita.
[ix] Conforme citação, Russell e
Wittgenstein entenderam que a asserção fregeana tem significado do ponto de
vista psicológico. Mesmo na Ideografia (Begriffsschrift) pode-se encontrar uma
concepção tradicional e psicologista da lógica, mantendo-se a tensão com o psicologismo.
[x] Joseph Zalman Margolis (16
de maio de 1924 – 8 de junho de 2021) foi um filósofo americano. Um historicista radical,
ele escreveu muitos livros que criticavam os pressupostos centrais da filosofia ocidental e elaborou uma forma
robusta de relativismo.
https://en.wikipedia.org/wiki/Joseph_Margolis.
[xi] Exemplos da IA.
[xii] Para Peirce, de acordo com Haack,
a lógica é normativa e prescreve como devemos pensar. Já para a Kant, a lógica
descreve como realmente pensamos ou devemos pensar, nesse caso um psicologismo
forte, já o de Peirce um psicologismo fraco.
[xiii] Seu valor de verdade é
independente do estado psicológico de Fleming.
[xiv] Há afinidade, não identidade.