sábado, 11 de outubro de 2025

Dualidade semântica: do psicológico ao lógico

Uma jornada em busca do terceiro reino[i]

Francisco trabalha uma distinção entre lógico e psicológico na teoria fregeana, como sendo uma dualidade semântica. Nosso interesse está em entender como pode haver uma coadunação entre esses dois campos ou quais limites há entre eles. Para Francisco, a distinção entre lógico e não-lógico ocorre por meio de uma investigação semântica de sentenças da linguagem natural[ii].

Mas é como se a psicologia “atrapalhasse” o pensamento rigoroso e matemático. Há sentenças que, se logicamente contraditórias, ainda assim tem um sentido como a poética: “um campeão de perda de campeonatos” que tem uma intenção de provocar uma antítese irônica. É uma asserção da linguagem natural sem valor de verdade. Ocorre que, para Frege, não é um pensamento objetivo e pertencente ao mundo exterior, porém uma ideia subjetiva e interior e que vai variar de acordo com as afinidades individuais permitindo a própria expressão artística.

Para Frege, segundo o autor, não há psicologismo nas relações lógicas embora haja uma semântica em sentenças psicológicas expressas em determinados contextos. O sentido de uma frase é o pensamento que ela expressa[iii], mas se ela não tem referência, como na poesia ou lenda, não é verdadeira nem falsa; a ciência requer referência.

Sentenças da arte poética se utilizam da livre associação de ideias (não de pensamentos) e seguem preocupações estéticas, portanto há valor estético e não de verdade. Mas é a linguagem que estrutura essa fronteira por meio da investigação lógica porque uma investigação puramente psicológica enfoca conteúdos mentais individuais. A lógica assere pensamentos: eles têm sentido, comunicam algo, mas ela vai até o ponto em que eles tenham valor de verdade.

Conforme Francisco, há três momentos, para Frege: primeiro há o pensar, a apreensão do pensamento, depois há o julgar, o reconhecimento da verdade do pensamento e por fim há o asserir, a manifestação desse juízo. É dessa forma que procede a investigação científica e, no segundo passo, quando se reconhece o valor de verdade, é que podemos fazer asserções. Já as sentenças ficcionais não têm força assertiva, elas não têm relação com os atos mentais de julgar e asserir.

São prescrições lógicas que investigam a essência da verdade, que tem caráter metafísico, sem se ater à psicologia subjacente. Muito embora, de acordo com Francisco, Frege não negue que mesmo uma sentença assertiva científica também possa expressar um componente não lógico associado a seu sentido. No começo da investigação científica, quando estamos no campo das interrogações, há interferência de processos psíquicos, mas que vão sendo delimitados pela demonstração formal e, quando se reconhece a verdade daquele pensamento, então se descartam os processos mentais que foram apreendidos. Citando Francisco: “Não importa os processos mentais que possibilitam o ato de pensar, mas, sim, se o que pensamos é verdadeiro ou falso.” É como uma “limpeza de terreno”, podemos classificar, pois parte-se de um ato de pensar [psíquico] para se atingir uma demonstração verdadeira que permite julgamento e asserção.

Há interesse psicológico quando raciocinamos sobre leis naturais porque há processos mentais de apreensão de pensamentos que não avançaram para os atos de julgamento e asserção[iv]. Francisco cita o uso da vacina por Louis Pasteur: ele sentiu angústia ao aplicar a vacina canina em uma criança, havia dúvida, processo psíquico, porque ainda não havia reconhecimento da verdade. Porém, uma vez concluído o processo investigativo, há uma sentença que expressa o pensamento com valor lógico independente do mundo interior dos processos psíquicos[v].

Então, há componentes lógicos e não-lógicos nos processos mentais envolvidos no procedimento científico, mas a fronteira se dá quando o processo termina, quando um juízo se manifesta. Há que ter cuidado para que os processos psicológicos não desviem a ciência da busca do ser verdadeiro. Por outro lado, a lógica não se debruça sobre o processo mental subjetivo, porque ele não provoca alteração no valor de verdade de um pensamento[vi].

Uma vez que se debruçou nos aspectos psicológicos, Francisco trata agora da mente humana, como um “lugar” com conteúdos como ideias, que são interiores, e pensamentos, que são exteriores. Encontram-se, na mente humana, tanto estados perceptivos, psicológicos e subjetivos, quanto os objetivos e lógicos. Mas é ela que os organiza para que os pensamentos sejam comunicados pela linguagem, no ato de asserção [verdadeiro[vii]] que se torna público [novamente]. Francisco defende esse aspecto psíquico[viii] na comunicação humana, mas ideias podem ser sugeridas, ao passo que os pensamentos são transmitidos. Citando: “Um pintor, um cavaleiro e um zoólogo provavelmente conectarão ideias muito diferentes para o nome ‘Bucéfalo’”. Nota-se que há várias ideias e o “sentido” é apenas indicado porque elas são interiores e não podem ser comparadas, mas têm afinidades.

Francisco sublinha que Frege não formula o conceito de mente, já que é do campo psicológico, embora os pensamentos façam parte do processo mental / psíquico, assim como as ideias – lógico e psicológico estão lado a lado na mente humana. Contudo, a capacidade mental se divide em ideias, que são abstrações mentais subjetivas e interiores; componentes não-lógicos, que são interiores, mas se expressam na linguagem, porém sem valor de verdade; e a capacidade mental especial, que são pensamentos puros e assertivos usados na lógica (o terceiro reino).

A partir dessa conceituação, Frege é considerado um antipsicologista (embora platonista[ix]...), porém Francisco traz críticas consolidadas por Vassalo, principalmente a caracterização de Margolis[x] de um antipsicologismo manco, porque não explica a natureza do terceiro reino. Frege tem teses antipsicologistas, como a fundamentação dos conceitos matemáticos, a construção da linguagem lógica e a elaboração de uma teoria do significado que eram consideradas por Putnam e Margolis componentes dos processos mentais (mundo interior). Mas Frege vai separar o conteúdo lógico da investigação psicológica em nossa mente, se os pensamentos são apreendidos do mundo exterior, usamos nossa capacidade psíquica para realizar operações numéricas, por exemplo (eles não se anulam). E mesmo em uma sentença pode haver componentes psicológicos e conteúdos lógicos, mas aí a distinção é feita pela teoria semântica.

Entretanto, a criação psíquica, considerada por Frege uma imperfeição da linguagem natural, pode ser eliminada por uma linguagem formal que expressa o pensamento puro (Conceitografia, Begriffsschrift). Assim, há um mesmo sentido objetivo partilhado (p.ex., "Alfredo não está no local X no tempo T") embora possa representar diferentes ideias subjetivas (p.ex., A imagem mental de Alfredo, ou o sentimento de alívio ou preocupação)[xi]. Se os psicologistas consideravam que todos esses processos eram mentais e internos, para Frege a apreensão do pensamento não está relacionada com componentes subjetivos que são individuais e sugeridos pela linguagem ao mundo exterior, com uma base psicológica falível.

Conforme citação de Putnam destacada por Francisco, o significado não pode ser um estado mental particular, tese psicologista, porque ele é apreendido por várias pessoas, então Frege o considera uma entidade abstrata [do terceiro reino] que é pública, ainda que apreendê-lo seja um ato psicológico individual. Assim a sentença “A lua é um satélite natural da terra” é um pensamento que pode ser apreendido, não criado pela capacidade mental humana, é reconhecido como verdadeiro [cientificamente]. Mas não se pode descartar que temos capacidade criadora de processos mentais subjetivos, os da arte poética, que Putnam parece não ter levado em conta segundo o nosso autor. Cabe ressaltar a distinção de Frege para os processos mentais: 1.) psicológicos, do mundo das sensações e sentimentos (Ψ - psi), não-lógicos, entram na linguagem natural nos processos lógicos (β - beta) e lógicos, capacidade mental especial de apreensão (λ - lambda).

Haack também foca na oposição entre lógica e processos mentais ao caracterizar Frege como antipsicologista, já que não depende de como pensamos individualmente e convencemos alguém, mas de uma lógica que é objetiva e normativa[xii].

Para terminar, vamos extrair um exercício das últimas colocações de Francisco. A sentença “A penicilina é um antibiótico” não era um pensamento de Alexander Fleming (ele mesmo disse que não a inventou, mas a descobriu), mas um pensamento que ele apreendeu do mundo exterior[xiii]. Ora, nas pesquisas, ele foi conduzido pela curiosidade que desaparece quando o pensamento é julgado verdadeiro e acaba provocando mudanças no interior de quem o apreende, embora permanecendo intocado. Por outro lado, se Fleming tivesse dito: “Impressionante, a penicilina é um antibiótico”, isto é, sugerindo algo psicológico do seu mundo interior pela linguagem natural, haveria além do pensamento verdadeiro uma sugestão psicológica que não é verdadeira nem falsa, mas que pode ser partilhada porque temos ideias aproximadas[xiv].

Então: (Ψ) a curiosidade de Fleming pertence aos processos mentais, (λ) processo mental de apreender um pensamento e (β) usar um acessório subjetivo ou ideia pertencente ao mundo interior. Tais componentes mentais podem ser distinguidos analisando-se a linguagem: para fazer ciência um fato deve ser procurado (um objeto, referência), ou seja, há semântica do sentido; para estudos da alma humana, diálogo cotidiano ou psicologia, observam-se componentes semânticos de caráter subjetivo.

Para terminar, vamos marcar esse ponto apresentado por Francisco: ao distinguir entre pensamentos e ideias Frege pode fazer uma investigação das sentenças da linguagem natural que leva em conta aspectos lógicos e não-lógicos. Então, se considerado antipsicologista, ele apresenta uma teoria semântica que se divide em uma categoria lógica e outra psicológica. Nessa dualidade, Frege também precisa fazer uma análise dos aspectos interiores para separar os conteúdos, não sem negar que, se os aspectos subjetivos predominam na criação poética, por exemplo, eles aparecem no início das investigações científicas, mas devem estar ausentes nas inferências lógicas e nos resultados das pesquisas científicas.

Originou um short: Terceiro Reino



[i] Conforme Gottlob Frege: os sentidos lógicos e psicológicos nas sentenças da linguagem natural, https://revistas.usp.br/filosofiaalema/article/view/200089, de Antonio Marcos Francisco. DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2318-9800.v27i2p.31-50. Este artigo apresenta como tema principal a teoria semântica de Frege para sentenças da linguagem natural e dos processos mentais associados à sua significação. Frege se fundamenta na análise da linguagem para distinguir na mente humana os elementos lógicos de outros de aspectos psicológicos. Portanto, nossa investigação visa apresentar nos escritos de Frege a presença de uma teoria semântica relacionada ao encanto estético da arte poética e outra lógica ou associada às investigações científicas.

[ii] De acordo com o dicionário do Google (Oxford Global Languages), lógico: cujo raciocínio é rigoroso, coerente, acertado e psicológico: pertencente à psique ou aos fenômenos mentais ou emocionais.

[iii] Marcando esse ponto, grifo 1.

[iv] Nota-se Sellars aqui: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2025/08/estruturas-perceptivas-e-inferenciais.html. Estruturas perceptivas e inferenciais.

[v] Marcando esse ponto, grifo 2.

[vi] Marcando esse ponto, grifo 3.

[vii] Interessante marcamos esse ponto de que o que se torna público, as asserções, são verdadeiras.

[viii] De certa forma se contrapondo à visão de Haack, que ele cita.

[ix] Conforme citação, Russell e Wittgenstein entenderam que a asserção fregeana tem significado do ponto de vista psicológico. Mesmo na Ideografia (Begriffsschrift) pode-se encontrar uma concepção tradicional e psicologista da lógica, mantendo-se a tensão com o psicologismo.

[x] Joseph Zalman Margolis (16 de maio de 1924 – 8 de junho de 2021) foi um filósofo americano. Um historicista radical, ele escreveu muitos livros que criticavam os pressupostos centrais da filosofia ocidental e elaborou uma forma robusta de relativismo. https://en.wikipedia.org/wiki/Joseph_Margolis.

[xi] Exemplos da IA.

[xii] Para Peirce, de acordo com Haack, a lógica é normativa e prescreve como devemos pensar. Já para a Kant, a lógica descreve como realmente pensamos ou devemos pensar, nesse caso um psicologismo forte, já o de Peirce um psicologismo fraco.

[xiii] Seu valor de verdade é independente do estado psicológico de Fleming.

[xiv] Há afinidade, não identidade.