domingo, 13 de março de 2016

Prefácio da Segunda Edição*

Metafísica tateante
§1. Podemos verificar se os conhecimentos pertencentes ao domínio da razão caminham na via segura da ciência pelos resultados alcançados, ou se são mero tacteio.
§2. A lógica atingiu a via segura da ciência desde Aristóteles e conhece seus limites, embora alguns modernos tenham tentado alargá-los acrescentado capítulos de psicologia, metafísica e antropologia. A lógica apenas trata das regras formais de todo pensamento.
§3. A lógica é propedêutica, antecâmara das ciências, pois abstrai os objetos do conhecimento e deles se preocupa com a lógica de os julgar, já que a aquisição reside nas ciências.
§4. Nas ciências, o conhecimento de razão é a priori e se refere aos objetos como: conhecimento teórico - pela determinação do objeto e seu conceito; conhecimento prático - realizando o objeto. É a parte pura da razão que determina totalmente a priori o seu objeto.
§5. Os dois conhecimentos teóricos da razão que determinam a priori o seu objeto são: a matemática - totalmente pura; a física - parcialmente pura, não só razão.
§6. A matemática também entrou na via segura da ciências desde os tempos gregos, mesmo tendo antes se mantido tateante por muito tempo, mas o fez por uma revolução que indicou o caminho a seguir. Tal foi o da demonstração geométrica que constrói conceitos, não de acordo com o que se vê na figura, mas que, para conhecer suas propriedades, descobriu que deveria por nela o que fosse consequência necessária do seu conceito e, assim, os conheceria a priori.
§7. A física demorou mais tempo, mas também se encontrou por uma revolução súbita no modo de pensar. Ela é fundada em princípios empíricos.
§8. Os físicos compreenderam que a razão só entende aquilo que produz segundo seus planos, que ela tem princípios que determinam seus juízos de acordo com leis constantes. A razão deve ir ao encontro da natureza com seus princípios e a experimentação por eles imaginada para interrogá-la e ser ensinada, então a física procura na natureza o que a razão nela pôs.
§9. A metafísica, enquanto conhecimento especulativo da razão mediante conceitos[1] e acima da experiência, ainda não achou o caminho seguro da ciência, permanecendo em um terreiro de luta sem vencedores. Tendo a pretensão de conhecer a priori leis comuns que a experiência confirma, sente-se embaraçada.

Caminho seguro para a metafísica
§10. Mas, podemos confiar na razão se elas nos ludibria no ponto mais importante do desejo de saber? Haveria como encontrar o caminho seguro da  ciência?
§11. Para tal, à maneira da física e da matemática, se deveria alterar o método da metafísica para a possibilidade de um conhecimento a priori dos objetos. Como Copérnico fez, se na metafísica admitia-se que o nosso conhecimento se regulava pelos objetos, agora deve-se tentar fazer com que os objetos se regulem pelo nosso conhecimento, para que a razão saia do seu embaraço. Isso em dois níveis: que os objetos dos sentidos se guiem pela nossa intuição e que a experiência pela qual conheço os objetos se regule pelos conceitos que me permite representá-los. E só conheço a experiência, antes dos objetos porque as suas regras estão pressupostas em mim pelo meu entendimento. Portanto, penso objetos, mas só conheço a priori das coisas o que nelas ponho[2].
§12. A metafísica na via segura da ciência dá um resultado positivo: explica-se conceitos a priori, objetos que a eles se regulam e leis que fundamentam a natureza, porém nos ensina a não ultrapassar os limites da experiência. Se o incondicionado nos leva a querer transpor os limites da experiência, devemos procurá-lo não nas coisas enquanto fenômenos [que se regulam pelo nosso modo de representação], mas nas coisas na medida que não as conhecemos, como coisas em si[3]. Uma vez negada a razão especulativa, se verificará se é possível um conceito racional transcendente do incondicionado pelo nosso conhecimento a priori, mas só no que diz respeito à razão prática.
§13. A alteração do método da metafísica pela crítica da razão especulativa não só a delimita mas também descreve sua estrutura interna. Porque a razão escolhe os objetos para os pensar de diversos modos e também as formas como se lhe coloca os problemas. No conhecimento a priori o que está no objeto vem do sujeito, como razão pura há uma unidade, um corpo organizado da razão. E assim, a metafísica abrange totalmente o campo de seus conhecimentos, determinados pela própria crítica.
§14. Então, a primeira utilidade da crítica é negativa, de limitar a razão especulativa ao campo da experiência. Mas se a razão especulativa estende a tudo os limites da sensibilidade, nada sobraria para a razão prática, que é a razão pura no uso da moral sem interferência da razão especulativa, e daí a utilidade se torna positiva. Então só conhecemos objetos da experiência pela intuição (cuja condição é espaço e tempo) que corresponde aos nossos conceitos, ou seja a razão especulativa se limita aos fenômenos. Entretanto posso pensar os objetos[4] como coisas em si, sem os conhecer, senão haveria aparência "sem haver algo que aparecesse". Sem a distinção fornecida pela crítica, somente pensaríamos as coisas como coisas em geral e não poderíamos, por exemplo, pensar a alma como determinada e livre ao mesmo tempo, o que acarretaria contradição. Pela crítica, considero a alma sujeita às leis da natureza enquanto fenômeno e livre enquanto coisa em si. Porém, como não conheço alma e liberdade, a limitação se dá aos conceitos do puro entendimento, entretanto posso pensá-los, pois a representação deles não acarreta contradição. Caso contrário, a liberdade e com ela a moralidade (e Deus, e alma...) ficariam presas ao mecanismo da natureza. Suprime-se o saber (recusa-se a razão especulativa em suas pretensões injustas a intuições transcendentes) encontrando a crença, tornando-se incrédulo o dogmatismo na metafísica. Usar a razão prática, então, é não reportar certas ideias à experiência, porque aí as converteríamos em fenômenos. Então, uma metafísica sistemática significa, por um lado, se orientar pela crítica na via segura da ciência, não perdendo tempo com um dogmatismo que distrai a razão das ciências sólidas; por outro lado, põe-se fim às objeções à moral e religião demonstrando a ignorância dos adversários de maneira socrática. Se há metafisica, há dialética, mas essa não deve perpetuar erros.
§15. A metafísica e sua subtil especulação não é acessível ao público – esse se mantém em seus interesses[5]. Mas quando a escola ousa fazer especulações, ela deve ser limitada pela crítica. Então a perda da razão especulativa é no monopólio das escolas e algumas de suas doutrinas controversas, como materialismo, fatalismo, ateísmo, incredulidade, passando por fanatismo e superstição até chegar ao idealismo e ceticismo, que levam os metafísicos a se embrenharem em pretensões arrogantes e poderiam causar escândalo se viessem ao grande público que delas nunca soube.
§16. O estabelecimento de uma metafísica sólida deve seguir o método dogmático de Wolff, que define conceitos, demonstra e extrai consequências e está apto a colocar a filosofia na via segura da ciência e não transformá-la em filodoxia, certeza em opinião. Mas esse filósofo dogmático estava preso a uma maneira dogmática de pensar e a crítica agora vem para limpar esse terreno dogmático que usa princípios inadvertidamente, sem saber como os alcançou; a crítica vem prevenir a razão de sua própria capacidade, mas permitindo o desenvolvimento escolástico, dogmático e sistemático da metafísica.
§17. Sobre o motivo da segunda edição é o de aclarar dificuldades e obscuridades, já que a natureza da razão especulativa é um todo organizado, há uma igualdade de resultados de cada parte para o todo ou da totalidade da razão pura para cada parte e qualquer contradição pequena poderia acarretar uma mudança não só no sistema, mas na razão humana em geral[6]. Muito embora se tratando de um discurso livre (e não matemático), ao se tratar de pontos isolados podem surgir aparentes contradições que contrastadas com o conjunto geral da obra são resolvidas.
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* Crítica da Razão Pura. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2010.
[1] Diferente da matemática que aplica os conceitos à intuição.
[2] Como na física, os elementos da razão pura devem ser confirmados ou refutados pela experiência. Então, as proposições da razão pura, seus conceitos e princípios a priori, devem considerar os objetos a partir de pontos de vista diferentes: como objetos dos sentidos ou como objetos que são apenas pensados.
[3] A análise divide o conhecimento puro a priori em dois elementos: fenômeno e coisa em si. A dialética os reúne de acordo com a ideia do incondicionado e mostra que a distinção é verdadeira.
[4] Desde que o conceito seja um pensamento possível, mesmo sem validade objetiva, em acordo com as fontes práticas e não teóricas.
[5] Para o senso comum basta que: a. saiba que tudo não se realiza nessa vida (que é muito pouco tempo...), não há necessidade de se falar na simplicidade da substância; b. saiba dos deveres que se opõem às inclinações, não há necessidade de se falar de necessidade prática subjetiva e objetiva; c. saiba que o autor do mundo se manifesta na ordem, beleza e providência; sem necessidade de se falar em contingência do mundo e necessidade e um primeiro motor.
[6] Ressalta-se uma nova refutação do idealismo psicológico que admite as coisas externas como crença, podendo-se demonstrar rigorosamente a realidade objetiva de uma intuição externa. Trata-se da consciência de minha existência no tempo. Se o fundamento da minha existência é uma representação, é representação de algo em mim ou exterior a mim? Se só tenho consciência da representação ficaria indeciso, mas como tenho consciência da minha existência no tempo, então não se trata somente de representação, mas de representação ligada a algo que permanece (sentido, não imaginação). Existe, sim, uma consciência interna da minha existência na representação eu sou, mas uma intuição que determina minha existência não é intelectual, mas sensível porque ligada a algo que permanece e não sou eu. É o exterior que determina a minha existência, porque me dá uma representação permanente e mutável distinta de tudo o que sou.

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